Entrevista com
Psiquiatra com especialização em vícios e diretor da Adeamus
Conversamos com um especialista em compulsões para entender um pouco mais sobre esse impulso humano que pode ser o começo de uma longa jornada.
9 de Janeiro de 2024
A compulsão é um excesso de interesse por um
determinado objeto de prazer que pode variar desde uma atividade - como a
compulsão por exercícios físicos - até a uma substância - que pode levar a um
quadro de dependência química, como te contamos neste artigo.
Das compulsões mais famosas, a alimentar se destaca
por ser provavelmente a mais comum. Estima-se que 2,5% da população mundial
sofra com esse mal que muitas vezes é a causa secundária de um outro problema,
como a ansiedade.
A comida se torna então o objeto de prazer desse
compulsivo e deixa de ser um item básico de sobrevivência pare se tornar um
item de obsessão que ultrapassa nossos sinais internos de fome.
Conversamos com Cirilo Tissot, Diretor da clínica
Audeamus, médico associado a Associação Brasileira de Estudos sobre Álcool e
Drogas e mestre em psiquiatria pelo IPq-USP. Ele nos explicou um pouco mais
sobre as origens e gatilhos desse mal. Você confere a conversa completa a
seguir!
Há 35 anos, comecei a observar na vivência clínica
com pacientes internados, um fenômeno que se repetia com alguns deles. Não era
com todos, mas a maioria dos afetados futuramente viriam a se somar com aqueles
pacientes de ambulatório pós-cirurgia bariátrica - procedimento para redução do
estômago.
Estes pacientes, frente à sobriedade do seu objeto
de vício (a comida), começavam a demonstrar interesse em outros objetos de
prazer. Nada de incomum, se não fosse pelo fato de ser abusivo e com
características compulsivas não relatadas anteriormente.
Um paciente que parava de beber começava a comer
compulsivamente na mesa do refeitório. Outro viciado em cocaína corria na
esteira da academia como um hamster “tresloucado”, enquanto outros demonstravam
interesse por sexo, compras ou jogos. De qualquer forma, um novo comportamento
se desenvolvia frente a supressão de outro, havendo uma migração entre
eles.
Meu interesse pelo estudo das compulsões iniciou-se
aí, não só pela curiosidade em diferenciar as origens da compulsão daqueles não
compulsivos, como também determinar um prognóstico frente a reabilitação. E no
meu ponto de vista, é ainda mais importante prever antes a recaída quando do
aparecimento de sinais da compulsão por qualquer coisa.
Dentro da psiquiatria e psicologia, a compulsão
está mais associada ao transtorno obsessivo compulsivo (TOC), onde o indivíduo
acometido tem ações repetidas habituais com características de rituais.
Essas ações produzem alívio emocional em quem
fantasia que alguma coisa de ruim irá acontecer. De qualquer forma, de modo
geral, a compulsão refere-se a uma ação repetitiva que busca alívio ou prazer,
que se impõe à razão apesar da percepção dos possíveis prejuízos acarretados,
dando, à pessoa, a sensação de descontrole sobre si mesma.
Na compulsão alimentar soma-se a ação de comer à
definição anterior, dentro de um curto espaço de tempo (duas horas), uma
quantidade não compatível com a fome ou vontade de comer das pessoas em
geral.
Como doença isolada (transtorno de compulsão
alimentar - TCA), caracteriza-se por episódios recorrentes de compulsão (pelo
menos uma vez por semana e durante meses), trazendo grande sofrimento, acessos
noturnos de vontade de comer e vergonha de ser visto comendo em público.
Ela não possui ação compensatória inadequada para
perder peso (vômito, diarreicos, enemas etc.), diferenciando-se, desta forma,
da bulimia. O Transtorno da Compulsão Alimentar caracteriza-se por ganho de
peso, propiciando a obesidade mórbida.
Na bulimia, apesar dos acessos de compulsão, não
necessariamente a pessoa tem ganho de peso, já que existe um cuidado excessivo
em não engordar. Podemos dizer também que no TCA a motivação principal é
hedonista. Ou seja, existe um grande prazer em comer, enquanto na bulimia tem
características de alívio da ansiedade.
Os transtornos da alimentação vêm aumentando no
mundo, afetando 2,5% da população. Porém, essa porcentagem tem sido maior no
Brasil, principalmente após a pandemia, atingindo 4,7% dos brasileiros, segundo
dados da OMS. Podemos pensar em duas causas principais: o
sedentarismo e o aumento da ansiedade.
Definições mais claras do que vêm a ser
os transtornos da alimentação, segundo os dois principais códigos de
classificação (DSM5 e CID 11), ajudam os profissionais a fazerem diagnósticos
mais precisos e, assim, termos mais precisão nas prevalências destes
transtornos. Sabemos que metade dos brasileiros que sofrem dos
transtornos alimentares estão acima do peso e, destes, 15% têm obesidade
mórbida.
A origem da compulsão alimentar é multifatorial,
onde a diversidade de fatores se relaciona de forma complexa para produzir e,
muitas vezes, perpetuar a doença. Os fatores precipitantes aumentam a chance do
desenvolvimento dos transtornos alimentares, mas não são inevitáveis.
Fatores ligados a personalidade, como baixa
autoestima, impulsividade e instabilidade emocional, além de história pregressa
de depressão, ansiedade e tendência a obesidade, estão associados ao
desenvolvimento da compulsão alimentar, como fatores de predisposição.
Por outro lado, já está bem estabelecido que a compulsão alimentar está diretamente relacionada a presença de restrição alimentar (dieta) como fator de precipitação, quando associado a tendência a obesidade e dificuldade no controle dos impulsos. Junto com a dieta, eventos estressores que geram desorganização da vida e ameaça da integridade física (doença, gravidez e abuso físico), estão também frequentemente associados, por gerar insegurança e sentimento de inadequação.
Diante de situações que aumentam a ansiedade, o
compulsivo reage de forma a ficar ruminando ideias negativas, que por sua vez,
geram sofrimento, sensação de vazio e o desejo imperioso de fazer algo a
respeito. O prazer em comer, neste momento, parece trazer
alívio e dá uma folga na pressão mental, promovendo distração e senso de
recompensa.
Além dos fatores predisponentes, é na infância que
se observa uma tendência da criança em engordar e a pressão familiar
subsequente pelo controle do peso (dieta restritiva). Isso se alastra para a
adolescência, quando o critério de beleza está socioculturalmente ligado a um
ideal de magreza, em um momento da vida onde as mudanças corporais cursam com
uma mudança de peso e de formas.
A supervalorização do ser magro aumenta a
insegurança do púbere e promove uma baixa autoestima. Familiares de indivíduos
compulsivos em primeiro grau têm quatro vezes mais chance de desenvolver a
mesma patologia, não sendo apenas por uma influência genética, mas pelo
aprendizado da restrição alimentar familiar.
Essa forma de funcionamento proporciona a
manutenção do quadro compulsivo, onde a restrição alimentar antecede a
compulsão alimentar, quando nos deparamos com os mesmos sinais e sintomas dos
adultos, quer pela velocidade e quantidade de comida ingerida, quer por comer
escondido ou durante a noite.
Não podemos esquecer também, que, quanto mais
urbanizada for uma criança, mais terá acesso a produtos alimentares super
processados e de baixo poder nutricional (os conhecidos “fast food”).
Isso também acarreta malefícios.
Enquanto
em outros transtornos por uso de substâncias a reabilitação cursa com ensinar a
pessoa a viver sem as drogas pela manutenção da sobriedade, na compulsão
alimentar é o inverso.
Manter uma rotina frequente de refeições (de três
em três horas), com alimentos saudáveis e em um contexto que traga bem-estar,
alimentando-se de forma devagar e com a prática de esporte nos momentos livres,
parece ser fundamental para uma mudança no estilo de vida.
A procura por profissionais especializados é
fundamental para orientação e seguimento da reabilitação. Um psiquiatra pode
ajudar com medicações, pensando nas comorbidades comumente associados na
compulsão alimentar, como ansiedade e depressão, por exemplo.
Um terapeuta para psicoterapia na linha
cognitivo-comportamental, preferencialmente. No caso de crianças e
adolescentes, ter um psicoterapeuta familiar pode ser de grande ajuda.
Nos últimos anos, medicações hipoglicemiantes vêm
ganhando espaço no tratamento das compulsões alimentares e os estudos voltados
para o emagrecimento indicam uma perda de peso de até 30% do peso corporal, sem
que os mecanismos de como isso ocorra ainda estejam bem esclarecidos.
De qualquer forma, parece atuar diretamente no circuito do prazer, diminuindo o senso de recompensa ou a necessidade de comer de forma compulsiva. Por outro lado, seus efeitos estão comprovados nos transtornos da compulsão alimentar como doença e não como sintoma. Isto é, não tem indicação na compulsão alimentar da Bulimia Nervosa, associada mais a ansiedade e sensação de vazio, mas sem o sobrepeso da obesidade mórbida, sua primordial indicação.
A dismorfia corporal das pessoas anoréxicas ou a
necessidade de purgar ou compensar o aumento do consumo de alimentos nas
bulímicas promove a perversão do uso inicial. O desejo de alcançar a beleza
ideal em um corpo magro, mais a venda livre sem prescrição médica nas
farmácias, pode agravar o quadro clínico das pessoas com diagnóstico de
anorexia e bulimia nervosa.
O Plenae Apresenta a história dos irmãos Filpi, participantes da nona temporada do Podcast Plenae!
22 de Agosto de 2022
Como é não se sentir bem dentro de seu próprio corpo? Miguel sabe e contou um pouco da sua experiência no segundo episódio do Podcast Plenae. Representando o pilar Relações ao lado da sua irmã, Natália, ele narra os fatos em ordem cronológica, de sua infância conturbada até a juventude, quando decidiu transcionar.
Gêmeos, os dois nasceram como mulher, mas somente Natalia seguiu assim. Ela conta que seu irmão sempre fora mais difícil e até um pouco revoltado diante de situações que, para ela, eram completamente comuns. “Eu lembro que a gente tinha uns 10 anos e alguém chamou ele de ‘moleca’. Ele ficou transtornado de um jeito, que eu não entendi o tamanho da revolta. (...) Teve o casamento de um primo que ele fez um escândalo porque não queria colocar um vestido. Ele chorava e falava: ‘Eu não quero arrumar o cabelo, eu não quero pôr essa roupa’. Ele estava muito incomodado, mas não sabia comunicar direito o que estava sentindo”, relembra.
Por ser mais rebelde, naturalmente as atenções da casa se voltavam a ele, o que deixava Natalia com a sensação de isolamento. Os dois travavam batalhas internas profundas e completamente diferentes, e externas também, porque brigavam bastante.
Foi num intercâmbio durante o ensino médio para os Estados Unidos que Miguel primeiro se assumiu como uma mulher lésbica, informação dada em primeira mão para sua irmã e, posteriormente, para seus pais, que receberam com certa tranquilidade e sem muitas surpresas.
Mesmo cortando o cabelo curto e comprando roupas masculinas, sua angústia sem explicação seguia, gerando um quadro de depressão. Em busca de tentar ajudá-lo, uma amiga o convidou para um bar e, para sua surpresa, ele conheceu pela primeira vez um homem trans. Foi quando tudo mudou.
“Eu botei esse cara na parede e disse: ‘Me explica tu-do!’. Depois eu fui saber que era o Lucas Scarpelli, um dos poucos youtubers que produzia vídeos sobre o universo trans. O Lucas me falou sobre o trabalho, sobre a família, sobre os sentimentos dele. Eu me identificava com cada frase que ele dizia. Ele parecia um clone meu que estava feliz e bem resolvido. Eu fiquei TÃO alucinado que fui embora do bar e passei 3 dias trancado em casa, pesquisando sobre transição de gênero. Eu sabia que isso existia, só que até então era uma coisa muito distante do meu universo, eu não conhecia ninguém que tinha feito. Procurei ajuda psicológica e médica e, aos 24 anos, comecei o meu processo de transição”, conta Miguel.
Dessa vez, contar para a família não foi tão simples assim. Se eles aceitaram bem o fato da homossexualidade, a transição de gênero já foi mais complexa e conturbada, sobretudo por parte do pai, médico, que se preocupava ainda com a sua saúde. Mas Miguel estava tão certo de que isso seria a resposta para seus problemas que nem mesmo a reação negativa de seus familiares o deteve.
“Quando uma pessoa faz uma transição de gênero, quem tá ao redor dela transiciona junto. Eu sabia que eu podia perder os meus pais pra sempre, que talvez eles não fossem aceitar a minha decisão. Só que eu estava tão feliz, eu tinha TANTA certeza de que era a coisa certa, que nenhum obstáculo ia me impedir de concretizar o meu plano. Eu passei 24 anos sendo triste e solitário. Não tinha sentido eu passar o resto da vida me sentindo miserável em função do que outras pessoas queriam pra mim”, desabafou Miguel.
Natalia, como sempre, o apoiou, mesmo tendo dificuldades iniciais para entender sobre o assunto e até para usar o pronome masculino. Foi nessa mesma época que ela também decidiu mergulhar em sua própria trajetória de autoconhecimento e passou a fazer terapia, processo que a ajudou a aprender a dizer não e se priorizar, por exemplo.
Hoje, a família já consegue compreender melhor, adotaram coletivamente o pronome masculino e entenderam que não se trata de uma simples “fase”, algo que vai passar. Para Miguel, cada conquista é uma pequena vitória, e ele mesmo admite ser uma pessoa não só mais feliz, mas também mais calmo e mais controlado. Natalia concorda. “No segundo em que o Miguel decidiu fazer a transição de gênero, eu consegui ver que a impaciência, a intolerância e a agressividade dele ficaram pra trás”, conta.
É possível ser feliz, como nos lembra essa história, mas é preciso que você seja protagonista das suas próprias escolhas, pois só se vive uma vez. Mergulhe nessa emoção apertando play nesse episódio por aqui ou escolhendo sua plataforma de streaming favorita!
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