Para Inspirar

Zica Assis em "O resgate da minha identidade"

Conheça a história de Zica, personagem do pilar Contexto e símbolo de perseverança, sucesso e resiliência

5 de Julho de 2020


Leia a transcrição completa do episódio abaixo:


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Introdução: Bem-vindo ao Podcast Plenae, um lugar onde você encontra histórias reais para refletir. Ouça e reconecte-se. 

No episódio de hoje, a empresária Heloísa Assis, a Zica, como prefere ser chamada, compartilha sua trajetória de aprendizagem, superação e muita garra. A filha do meio da dona Dulce e do seu João já entrou para a lista da Forbes das 10 mulheres mais poderosas do Brasil, ao lado da Gisele Bündchen e da Luiza Trajano. Sua jornada ilustra o pilar Contexto. No final do relato você ouvirá reflexões do monge Satyanatha, nosso convidado especial dessa temporada, para ajudar você a se conectar com o seu momento presente. Aproveite este momento, observe seus sentidos e abra-se para uma nova visão sobre o mundo e sobre você mesmo.

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Zica Assis: Eu sou a filha do meio entre 13 irmãos, seis pra cima, seis pra baixo.

A gente cresceu na comunidade do Catrambi, perto do morro do Borel, na Tijuca, zona norte do Rio. Minha mãe lavava roupa para fora e meu pai vivia de fazer bicos.

A gente morava em um barraco de 20 metros quadrados, dois cômodos, chão de terra batida e telhado de zinco.

Nem tinha cama. Dormia tudo apertado, no chão mesmo. Apesar de todos os problemas, a energia da nossa casa era boa. Meus pais ensinavam que a gente tinha que se unir, se ajudar para superar as dificuldades. E era isso que a gente fazia.

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A minha maior alegria eram os bailes que aconteciam no sábado e domingo à tarde, perto de casa, num grande barracão de madeira azul. Como era matinê, com 7 anos eu já frequentava o baile e a comunidade toda ia. Naquela época, final dos anos 60, começo dos anos 70, a influência do soul americano era muito forte e as festas faziam concurso de melhor cabelo black power. Eu tinha um black enorme, o maior da comunidade e ganhei vários desses concursos. Eu morria de orgulho do meu belo pêlo. Ah, pêlo, é como a gente chamava o cabelo black na época.

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Apesar de fazer sucesso no baile, eu sofria preconceito na escola. Eu nunca pude sentar na frente da sala, porque o black incomodava ela. Quando ela me chamava a atenção por alguma coisa, ela não falava o meu nome, mas dizia assim: “Ô, menina, você aí do cabelo armado”. Ou ainda pior: “você aí do cabelo de arame farpado!” Não tinha a Heloísa, não tinha a Zica. Embora eu ficasse muito triste na escola, o maior problema não foi esse.

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Em casa, existia uma regra: quando a gente fazia 9 anos, tinha que começar a trabalhar. Minha mãe ficou sabendo que uma família do Alto da Boa Vista, onde só tinha mansões, precisava de uma babá pra uma criança de 5 anos, e ela me levou lá pra conhecer a patroa. Era uma casa enorme. O muro era de pedra e com um belo jardim. E logo no portão, a mulher olhou pra mim e falou: “com esse cabelo, você não entra. Tem que dar um jeito”.

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Eu fiquei paralisada por alguns segundos, sem entender o que estava acontecendo.

O que o meu black tinha a ver com tudo aquilo? Por que eu não podia apenas fazer o meu trabalho? Só acordei quando minha mãe segurou firme no meu braço, olhou pra mim e falou: “Seus irmãos precisam de comida! Vai ter que cortar o cabelo!" Cortar o cabelo, pra mim, era deixar de ir ao baile. Porque como eu ganhava os concursos eu não precisava pagar pra entrar. Sem meu pêlo eu ia deixar de me divertir. Mais do que isso, eu ia deixar de me achar bonita. Ele era a fonte da minha alegria. Eu fiquei arrasada!

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Fui pra casa e minha mãe cortou meu cabelo. Eu chorava muito. Não cortei curtinho, porque eu ainda queria me sentir menina. Aí ficou um blackzinho. Mas não…. não foi suficiente pra patroa. Eu ia ter que alisar. A maioria das mulheres da comunidade também alisava o cabelo pra trabalhar e minha mãe pagou uma vizinha fazer o meu. No quintal da casa dela, ela espalhou henê na minha cabeça. Henê é uma pasta química que alisa e colore o fio de preto. Depois, ela ainda passou um pente de ferro quente. Meu cabelo ficou totalmente liso. E eu me senti horrorosa. Ganhei um emprego, mas perdi a identidade. 

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Nessa época eu chorava muito sozinha, mas nunca na frente da minha mãe e dos meus irmãos. Eu guardei essa tristeza dentro de mim e joguei a energia toda pro trabalho.

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Aí eu virei a melhor lavadeira da região. A melhor babá. A melhor faxineira. Eu prestava atenção nos detalhes: pegava as flores no jardim e colocava num vasinho, arrumava a cama bem bonita, fechava as cortinas da sala pra não esquentar a casa. Fui fazendo isso tão bem que as patroas me amavam. Para mim, ter um trabalho era fundamental para o sustento da minha família, mas por causa dele eu deixei de me divertir durante a infância e adolescência. Nem namorado eu tive, de tanto que eu me dediquei ao trabalho. Enquanto isso, eu continuava alisando o cabelo. Todo mês! Várias vezes eu não tinha dinheiro pro henê e passava ferro de carvão mesmo no cabelo. Parece até coisa de novela, né? Mas não é, não! Era assim mesmo.

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Na minha comunidade tinha sempre alguém que aprendia uma profissão e aí ensinava o outro. Quando eu tinha 21 anos, fiz um curso de cabeleireiro na Igreja de São Camilo de Lellis, ali mesmo no meu bairro. Não era um curso especializado que nem hoje. Eu nem pensava em ser cabeleireira, eu só queria aprender a cuidar do meu cabelo.

Por que meu cabelo crescia pra cima? Por que ele era grosso? Por que ele não tinha brilho? Mas principalmente, eu queria entender porque as pessoas associavam o crespo à sujeira e a desleixo. Infelizmente, o curso não deu as respostas para as minhas perguntas. Porque, na verdade, o que ele ensinava era o alisamento que todas as minhas vizinhas faziam. Mas ali nasceu uma paixão.

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Eu acabei fazendo amizade com os fornecedores de henê e de pasta para alisar o cabelo e pedi para que eles me trouxessem não os produtos prontos, mas as matérias-primas. E aí, eles chegaram com um monte de pozinho. E eu nem sabia o que era o quê.  Mesmo assim fui pro tanque, separei uma bacia com água, uma colher de pau e comecei a misturar os pozinhos de qualquer jeito, sem seguir nenhuma receita.

Na maior inocência, apliquei aquele negócio em metade do meu cabelo, da raiz até a ponta. E… surpresa… Meu cabelo caiu todo. Foi horrível ver o meu cabelo se desfazendo na minha mão. Mesmo assim coloquei um lenço na cabeça e não desisti. 

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Os anos passaram, eu casei, tive três filhos e continuei fazendo faxina para colocar dinheiro em casa. Mas, nos fins de semana, quando tinha um tempinho, eu ia pro tanque e fazia minha alquimia. Quer dizer, eu não entendia absolutamente nada de química. Eu misturava tudo o que você pode imaginar. Pegava os pozinhos e misturava com azeite, óleo de cozinha, sabão e o que tivesse à mão.

Aí, teve uma época que o meu marido se chateou. Meu cabelo tava destruído, cheio de buraco no couro cabeludo. Eu vivia de lenço. Ele implicou muito e eu falei: “Quer saber? Vou pegar meus irmãos de cobaia”. Porque em casa era lei: os irmão mais novos tinham que obedecer os mais velhos.

E aí eu escolhi o Rogério, que já era meu parceiro, entregando as roupas que eu lavava. O cabelo dele também caiu várias vezes com as minhas misturas, coitado. Mas ele esperava crescer e deixava eu passar de novo.

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Depois de oito anos e muito cabelo estragado, eu recebi o primeiro elogio. Eu estava voltando pra casa depois de um dia de trabalho e uma prima minha me parou na rua. Ela falou que meu cabelo estava lindo! Mais do que isso, ela pegou no meu cabelo e perguntou o que eu estava passando, pra passar no dela também.

Foi incrível, porque naquela época ninguém nunca elogiava o meu cabelo, só o meu trabalho, a minha alegria… Mas não o meu cabelo. Nesse dia, quando eu cheguei em casa, corri pro banheiro e me olhei no espelho. Meu cabelo estava hidratado, com balanço e cachos definidos. Minha vida começou a mudar aí!

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Eu tinha a mistura na mão, mas ainda não sabia o que fazer com ela. Foi quando eu tive a ideia de conversar com as minhas patroas. Elas eram as únicas referências que eu tinha de pessoas estudadas. Infelizmente, nem a primeira, nem a segunda me incentivaram. Falaram que eu era louca, que deveria continuar fazendo faxina, que era o que eu sabia fazer bem. Mas a terceira me ajudou.

Ela arrumou uma profissional de química, que foi até a minha casa e viu meu passo a passo. Essa mulher transformou a minha mistura caseira em fórmula e ainda me explicou como registrar o produto. Eu sou muito grata por ela ter me ensinado o caminho das pedras. 

Eu já tinha 33 anos, ainda era empregada doméstica, ajudava a sustentar a minha casa quando consegui a patente do "Super-Relaxante". Tinha chegado a hora de arriscar. Meu marido, que é 20 anos mais velho que eu, já era aposentado. Com o dinheiro da rescisão na empresa, ele tinha comprado um Fusca 78 e trabalhava como taxista na comunidade. Era o único bem de grana da família. Convenci ele a vender o carro e investir em um salão de beleza. Acontece que o dinheiro ainda não era suficiente. Meu irmão Rogério, que já tinha sido meu parceiro de baile e cobaia de cabelo, virou meu sócio, e ele trouxe junto a Leila. Nós juntamos o que hoje seriam uns 4.200 reais. 

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A última faxina que eu fiz na vida foi numa segunda-feira. Eu sei, porque abrimos o Beleza Natural no dia seguinte, 27 de julho de 1993, lá na Tijuca. Esse dia marcou a minha vida. O salão ficava em uma casa de fundos, com uns 30 metros quadrados e mais de 100 anos. Tinha piso de cimento, pé direito alto e as paredes descascadas. Tinha café passando na hora e, principalmente, era feito para as mulheres de cabelos crespos e cacheados, coisa que o mercado não enxergava na época. Era pobrezinho e pequenininho, mas acolhedor e inovador. 

No primeiro dia eu, meu marido, meu irmão e  a Leila fomos de ônibus até lá. Quando eu coloquei a chave no portão minhas mãos tremiam a suavam. Abrimos às 9h em ponto. E no dia inteiro... Não apareceu ninguém. Nem as vizinhas que me incentivaram a abrir o salão. Pra não dizer que não entrou ninguém, a minha família chegou de noite, pra festa de inauguração. Eu fiz salgadinhos, comprei refrigerante e brindamos com espumante nacional. Eu chorei de emoção várias vezes naquele dia, porque eu me vi como profissional, como empresária, como patroa.

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Dois dias depois que a gente abriu o salão, o Itamar Franco, presidente na época, anunciou o Plano Real. Acabou a inflação e começou a ascensão da classe C. As primeiras clientes começaram a chegar. Em três meses, já tinha fila na porta. Quando o salão abria, às 9h, já tinha umas 100 pessoas esperando. A gente teve que começar a distribuir senhas e saía do salão meia-noite, uma da manhã, porque não dava conta!

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Hoje, nós somos uma rede com 38 endereços em 5 estados. Quando acontece alguma coisa que me deixa triste, eu olho para trás e penso de onde eu vim, da comunidade de onde eu saí e que agora eu consigo ajudar. Eu lembro dos concursos que eu ganhei, do meu cabelo sendo cortado, das faxinas, dos pozinhos misturados, do meu irmão deixando o cabelo dele crescer só pra eu testar tudo de novo.

Lembro da minha prima elogiando meu cabelo lindo, da patroa que me incentivou e da química que acreditou em mim. Lembro do meu marido vendendo o fusquinha dele e do meu irmão e da Leila juntando o dinheirinho suado deles pra me ajudar. E aí eu levanto a cabeça, dou um sorriso e tá tudo bem.

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Satyanatha: Chegamos ao fim da história da Zica. Não tem nada mais bonito do que aprender a ser você mesmo. A Zica insiste em ser ela. Tem uma música do Cartola que diz: “Deixe-me ir, preciso andar, ir por aí a procurar, rir pra não chorar. E se alguém por mim perguntar, diga que só vou voltar depois de me encontrar”. Conhecer a si mesmo é encontrar uma vibração que é só sua, algo especial que só você tem. O “eu” não é um ponto, mas é uma frase, uma prosa fluida. 

Quando a gente descobre e aceita quem se é, alcança o ápice produtivo. Se eu, que sou monge, tentasse ser matemático, a minha contribuição pra humanidade seria menor. A Zica era uma excelente faxineira, mas ajudou a mudar a vida de muito mais gente porque persistiu na busca pela sua identidade, até encontrar a fórmula para embelezar os seus cachos. A identidade deu a ela a sensação de pertencimento. 

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Finalização: Nossas histórias não acabam por aqui. Acompanhe semanalmente novos episódios e confira nosso conteúdo em plenae.com e no perfil @portalplenae no Instagram .


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Para Inspirar

Tiago Mochileiro em "​A educação salvou a minha vida"

Foi com a ajuda dos livros na infância que ele se encontrou e mudou de realidade - e agora busca fazer o mesmo para outras crianças.

28 de Novembro de 2022



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

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Tiago Silva: Se eu tivesse seguido o caminho normal para uma pessoa com a minha origem, eu não estaria aqui contando essa história para você. Para minha sorte, a minha mãe, que é semianalfabeta, dizia: “Você tem que estudar”. Desde cedo, eu percebi que a educação era o único caminho para contrariar a trajetória de pobreza e subverter a realidade a minha volta.

 

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Geyze Diniz: Foi na biblioteca que Tiago Silva descobriu o poder dos livros. Através da leitura, ele ganhou confiança para defender suas ideias e ter suas próprias convicções. Hoje, ele é empreendedor social e através de seu projeto "Mochileiro pela Educação" procura contribuir para que mais jovens possam ter acesso à educação, mudando o próprio destino. Conheça a trajetória de Tiago, que já distribuiu mais de 11 mil livros em 83 cidades do Brasil.

 

Ouça no final do episódio as reflexões do historiador Leandro Karnal para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

 

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Tiago Silva: Eu nasci numa cidade chamada Junqueiro, no interior de Alagoas. É uma cidadezinha de 20 mil habitantes, a 130 quilômetros da capital, Maceió. Cresci ouvindo que meu estado tinha alguns dos piores índices do país em relação a analfabetismo, desigualdade social, IDH e mortalidade infantil. 

 

Junqueiro é rodeada por canaviais. No período da queimada da safra, a cana vira um pó, que se dissipa no ar e entra nas residências. A gente colocava uma lona entre o telhado e as vigas de madeira do teto pra barrar essa fuligem. Mas não adiantava muito. O chão de cimento queimado ficava imundo e eu acordava cheio de pó. Aí eu tomava banho de cuia no quintal, porque a gente não tinha chuveiro.

 

Em casa também não tinha televisão. Em 1994, quando eu completei 5 anos, a prefeitura instalou uma TV na rua vizinha. Foi o ano em que o Ayrton Senna morreu, ano também em que o Brasil ganhou o tetra na Copa do Mundo de futebol. Eu me lembro do pessoal assistindo aos jogos e gritando. Tudo isso tá guardado na minha memória, porque foto da minha infância eu só tenho uma. Sou eu neném, sentado numa cadeirinha. A minha mãe diz que ou a gente tirava uma foto ou comia, então ela preferia gastar com comida.

 

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A minha mãe criou os 4 filhos com a ajuda da minha avó. Eu e meus irmãos temos pais diferentes. Eles conheceram os pais e foram registrados por eles. Eu nem isso. A nossa infância foi marcada pelo julgamento alheio por essa característica familiar. As pessoas me perguntavam: “De quem você é filho?”. E eu respondia: “Da dona Quitéria”. “Mas quem é seu pai?”. Essa pergunta me deixava sem jeito, porque ela não tinha resposta. 

 

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Durante muito tempo, a minha mãe trabalhou como gari, varrendo as ruas. Ela conta que muitas pessoas perguntaram se ela não queria dar os filhos pra outras famílias com mais condição de criar. Era uma coisa comum na minha região. Mas, apesar das dificuldades, ela nunca cogitou fazer isso.

 

Em casa, a comida era contada. Todo dia, no café da manhã, a minha avó abria um pacote de biscoito de água e sal. Em cada embalagem vinham 28 biscoitos. Dava sete pra cada criança. A mensagem da minha avó era: “Coma bastante na escola”. Eu fazia isso. Forrava o estômago com merenda, para aguentar o rojão do dia. Quando tocava o sino do intervalo, eu saía em alta velocidade para ser o primeiro da fila e, depois, repetir o prato. A comida era boa demais, com coisas que a gente gosta aqui no nordeste, tipo cuscuz com ovo, macaxeira e inhame.

 

A minha avó era analfabeta e mais voltada pro trabalho. Ela dizia: “Vocês têm que trabalhar, porque filho de pobre não estuda, filho de pobre trabalha”. Não é que ela não acreditasse no nosso potencial. Ela ouviu isso durante muito tempo e foi repassando a crença. Mas a minha mãe pensava de outro jeito. Apesar de também não ter tido acesso aos estudos, ela acreditava que a educação poderia mudar o nosso destino. E insistia pra gente estudar.

 

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Eu ia bem na escola, só tirava 9 e 10. Era o melhor aluno da classe em matemática. Só que eu conversava demais na aula e, por isso, era convidado a me retirar da classe com frequência. Um dia, quando eu tinha 13 anos, um professor me viu no corredor e disse: “A partir de hoje, você vai ser monitor da biblioteca”. E eu: “Biblioteca, professor? Nada a ver isso! Nem combina comigo, porque eu nem gosto de ler”. Ele retrucou: “Você vai ser monitor da biblioteca, vai catalogar e limpar livro. Você vai ler um livro por mês e me entregar um relatório”.

 

Eu não tinha como dizer não, porque não era um pedido, era uma ordem. Então eu fui para biblioteca, com uma sensação de “meu Deus, que que eu tô fazendo aqui?”. Mas aos poucos aquele universo foi me cativando. O primeiro livro que me chamou atenção foi Os Miseráveis. Quando eu li o título, pensei: “É, tudo a ver comigo, vou ler esse livro”. Mal sabia eu que tava pegando na obra mais clássica do escritor Victor Hugo. Era uma versão resumida, adaptada pelo Walcyr Carrasco, com 130 páginas e uma capa vermelha. Quando eu comecei a ler, eu me identifiquei com as personagens, com o contexto, com a estética literária. E fiquei imaginando como seria viver na época da Revolução Francesa, como seria viver em outro país. 

 

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Eu me interessei por literatura clássica e nunca mais parei de ler. O livro foi um ponto de virada da minha trajetória. Por causa da leitura, o meu vocabulário foi melhorando. Eu fui ganhando confiança e comecei a defender as minhas ideias em público. Eu, que antes me sentia uma criança invisível pros outros e até para mim mesmo, comecei a me tornar uma pessoa com convicções próprias.

 

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Quando eu cheguei no Ensino Médio, os meus amigos da rua já não estavam mais interessados em estudar. Eles queriam se casar, ter filhos e conseguir um emprego para sustentar a família. Muitos deles já cortavam cana-de-açúcar. No período da entressafra, eles iam pro Paraná ou pra São Paulo cortar cana, e voltavam 6 meses depois. 

 

Mas eu tinha um outro grupo de amigos com mais grana. Eles moravam no centro da cidade e eram filhos de comerciantes, tipo o dono da sorveteria, o dono do mercadinho. Essa turma tinha um discurso diferente, queria fazer faculdade. E foi assim que eu soube que existia outra possibilidade de futuro.

 

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A essa altura, as minhas irmãs mais velhas tinham engravidado na adolescência e só completaram o ensino médio. Era a repetição da história familiar. Mas eu queria outra vida pra mim. A minha mãe, que nem sabia o que era universidade, apoiou a minha decisão de continuar estudando.

 

No período pré-vestibular, eu trabalhava de manhã como garçom, estudava à tarde e à noite fazia cursinho numa cidade vizinha. Chegava em casa à meia-noite e, no outro dia, acordava às 5 da manhã, pra começar tudo de novo. 

 

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Eu passei numa universidade pública e mudei de cidade pra estudar Medicina Veterinária. Consegui me manter com bolsa de estudo, mas percebi que a minha vocação era outra. Prestei vestibular de novo e entrei num curso tecnológico de Recursos Humanos, em Maceió.

 

Eu fui a primeira pessoa da minha família a fazer faculdade. Eu sabia que ter um diploma seria um divisor de águas e romperia o ciclo da pobreza. Por isso, ainda durante o curso, o meu plano era devolver a educação o que ela fez pela minha vida. E assim nasceu um projeto chamado Conversando sobre Carreira. Eu convidava profissionais de várias áreas pra falar com os jovens de escolas públicas, pra contar como a educação transformou suas vidas. O meu objetivo era dar pra esses adolescentes o que eu não tive: a oportunidade de conversar sobre o futuro. E nada melhor melhor do que o exemplo de pessoas com histórias reais e inspiradoras. 

 

Os jovens ficavam encantados nas palestras. Muitos deles nunca tinham visto um médico fora do hospital. Nunca tinham conversado com um engenheiro, um bombeiro, um veterinário. Carreira e ensino superior eram sonhos distantes para os mais pobres.

 

Durante 2 ou 3 anos, eu consegui levar os convidados, todos voluntários, para lugares próximos a Maceió. Mas a minha ideia era atingir lugares mais longínquos, comunidades mais carentes, chegar a quilombos e aldeias indígenas. E aí eu não encontrava quem quisesse ir, porque a pessoa não queria perder um dia de trabalho. Eu pensei: “Meu Deus, como esse projeto vai andar agora?”. Aí eu me lembrei: o livro! As personagens estão lá, as histórias estão lá. Eu posso dar uma palestra e distribuir livros. 

 

Então eu fui num alfarrábio, num sebo, e comprei 10 livros. Dois exemplares d’A Menina que Roubava Livros, dois O Pequeno Príncipe, dois Alice no País das Maravilhas, dois O Caçador de Pipas e dois O Menino do Pijama Listrado. Não foram escolhas aleatórias. Com essas obras, eu poderia trabalhar competências sócio-emocionais e valores, como amizade, coragem e amor. 

 

E aí eu comecei a colocar livros na mochila e levar para as escolas, mesmo que eu fosse sozinho. Eu postava essas fotos no Facebook e um amigo comentou assim: “Tiago, você é um mochileiro pela educação”. E não é que o nome pegou?

 

Já são 10 anos de trabalho, 83 cidades visitadas em 13 estados brasileiros e 11 mil livros distribuídos. O Mochileiro pela Educação se consolidou como um negócio de impacto social, balizado em três grandes frentes, que são: construir um mundo onde os mais jovens leem, construir um mundo onde mais jovens inspiram e construir um mundo onde mais jovens empreendem. 

 

Quando eu chego numa escola, eu começo contando a minha história. A minha palestra se chama “O fracasso não suporta jovens que sonham”. Os estudantes veem que eu sou uma pessoa igual a eles, com uma origem parecida com a deles, e começam a alimentar a esperança. Tipo: se esse cara consegue, eu também consigo. No fim da palestra, eu digo: “Mas não é uma história isolada. Também tem a história do Pequeno Príncipe”. E dessa maneira eu introduzo o livro. Cada aluno ganha um exemplar e a tarefa de ler a obra, pra gente discutir depois.

 

Com essa estratégia, eu sinto que eu consigo mostrar pros jovens que a educação salva vidas. E educação não é só português, matemática e outras competências técnicas. É também o olhar sensível de um professor, como aquele que me mandou pra biblioteca. É conhecer novos mundos através do livro. E, claro, é a chance de ter um diploma universitário. Porque uma coisa é você ir pra faculdade, entender que aquilo não é para você e escolher outro rumo. Você teve a oportunidade. Outra coisa é nem sequer sonhar com essa possibilidade, por não acreditar no seu potencial ou porque alguém disse que não é pra você. A universidade é para todos, desde que a pessoa queira, acredite e conheça os caminhos pra chegar lá.

 

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A educação transformou não só a mim, mas a minha família também. A minha mãe sentia vergonha de andar com a gente, porque ela era xingada por ter um filho de cada pai. Hoje, as pessoas pedem para tirar foto com ela, por ser a mãe do Mochileiro pela Educação. Ela é tímida e fica sem jeito, mas no fundo ela adora. De tudo que a gente conseguiu, o que me deixa mais feliz é a felicidade da mãe. É ver o orgulho que ela sente por ter acreditado na educação como ferramenta pra mudar as nossas vidas.

 

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Leandro Karnal: Tiago Silva tem uma história muito bonita. Vindo de uma realidade de muito desafio, de pobreza, em meio a cultura do corte de cana, em meio a falta de perspectiva e de esperança. Pessoas honestas, trabalhadoras, mas que dada a formação e a sua realidade imaginavam que o grande destino era formar família, casar e trabalhar na lavoura. O Tiago foi tocado por alguém que o obrigou a ler e leu uma adaptação do Walcyr sobre a grande obra do Victor Hugo, Os Miseráveis. E a partir dali o livro acendeu nele a vontade de crescer, a vontade de ser mais. E ele foi enfrentando os desafios, fez a faculdade, tornou-se a primeira pessoa da família a fazer faculdade e criou um projeto, primeiro, Conversando sobre a Carreira, levando pessoas formadas para conversar com jovens de escolas públicas onde eles podiam ver que, sim, era possível ser médico, veterinário, era possível ser engenheiro, era possível sonhar. Porque se é verdade que toda função é digna, todo trabalho honesto é digno, como é bom oferecer um horizonte, uma esperança. E ele quis repetir a experiência que os livros representaram para ele, de transformação. Então ele passa a distribuir e passa a visitar escolas e vira o Mochileiro pela Educação, transformando a realidade dele, a realidade de outras pessoas. Ele consegue com isso, não apenas deixar claro para os outros que é possível, mas ressignificar sua própria história. Ele transforma dificuldade em oportunidade, de fato em todos os sentidos o Tiago é um vencedor, é um modelo, é uma história muito inspirada pra gente refletir. 


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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.


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