Para Inspirar

Thaís Bastos em "Depressão pós-parto não é frescura"

A médica conta como as questões emocionais

14 de Novembro de 2022



Leia a transcrição completa do episódio abaixo: 

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Thaís Bastos: Eu sou médica, tenho acesso a muitas informações e, mesmo assim, senti vergonha quando tive depressão pós-parto. Eu não queria que ninguém soubesse. Tinha preconceito, pensava que era frescura de gente privilegiada. Mas não é. No meu trabalho no SUS, eu descobri que o transtorno não escolhe classe social. Ele é comum e pode afetar qualquer mãe.


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Geyze Diniz: Thaís Bastos, assim como muitas mães, tinha vergonha em dividir o turbilhão de emoções que sentiu depois de dar a luz aos seus filhos. Enquanto tentava corresponder aos padrões da sociedade para ser uma mãe perfeita e viver a alegria da maternidade, ela enfrentava o paradoxo de uma tristeza profunda. Após passar por duas depressões pós-parto, conseguiu se libertar das cobranças, se reconectar com sua família e voltar a se dedicar ao seu trabalho. Conheça como Thaís atravessou este período e voltou a encontrar o equilíbrio pessoal e profissional.

 

Ouça no final do episódio as reflexões do historiador Leandro Karnal para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

 

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Thaís Bastos: A minha primeira filha foi uma criança que eu e meu marido desejamos muito. Mas, quando ela nasceu, eu não senti só alegria. Senti bastante tristeza também. Eu sorria por fora, mas por dentro pensava “cadê aquele amor materno imediato e incondicional que tanto me disseram?”. E isso me dava muita culpa. Foram dois meses de bastante instabilidade emocional. Eu sou uma pessoa alegre, pra cima. Aquela angústia e tristeza não combinavam comigo. Mais tarde, eu fui entender que eu tive o que os médicos chamam de “baby blues”. É um quadro que atinge a maioria das mulheres no puerpério e que está associado às oscilações hormonais da gravidez. O “baby blues” não chega a ser uma doença. Não precisa de tratamento e passa sozinho. Foi assim comigo.


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Eu voltei a ser uma pessoa solar. Só que eu virei uma mãe neurótica. Eu não tinha interesse em quase nada que não fosse a minha filha. Eu sou oftalmologista e organizei a minha agenda em função dos horários dela. A minha meta era trabalhar o mínimo possível, pra poder estar presente pra ela em qualquer ocasião. Se ela espirrasse, eu tinha que estar do lado. Se ela saísse da escola às 11h30, às 11h eu já tinha que estar de plantão, soltando foguete.


O meu marido percebia que aquela dedicação estava exagerada. Ele achava que eu devia tirar um momento do dia só para mim. Ele dizia: “Você chega do trabalho às 4 da tarde. Por que você não vai pra uma academia? Você gosta de malhar”. Eu virava para ele e falava: “Você tá louco? Eu tenho uma filha, eu vou ficar com ela”.
Ser a mãe “perfeita”, sempre presente e disponível, virou uma coisa obsessiva. 


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Logo engravidei de novo. Quando minha outra filha nasceu, eu entrei em parafuso, pensando: “E agora? Como eu vou me dedicar à filha mais velha?”. Se eu dava de mamar para a pequena, me culpava por não estar dando atenção para a maior. Aí eu decidi não amamentar mais. E me culpava por não amamentar. Uns dois meses depois que ela nasceu, eu comecei a ficar muito mal e fui pro extremo oposto. Eu perdi o interesse pelas minhas filhas. Só queria ficar na cama, não tinha apetite e chorava muito. Por insistência do meu marido e da minha mãe, procurei uma psicóloga. 


A psicóloga disse que eu estava com depressão pós-parto, mas leve. Se eu fizesse um compromisso com o tratamento, ela achava que daria pra resolver o problema sem precisar ir ao psiquiatra. Eu nunca tinha feito terapia, nem me interessava por autoconhecimento. Era uma pessoa extremamente fechada, com muita dificuldade pra falar de sentimentos. Mas eu topei. Quando eu me culpava por trabalhar, a psicóloga me acalmava: “Toda mulher trabalha. As suas filhas estão bem”. Aquelas conversas foram me ajudando e a depressão passou. Eu larguei a terapia, mas voltei pro esquema da maternidade neurótica.


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Quando a mais velha estava com 7 anos e a menor, com 5 anos, eu engravidei novamente. Dessa vez sem planejar. Já no primeiro ultrassom, o médico disse: são gêmeos. Eu fiquei em choque, mas confesso que procurei nem refletir sobre o impacto daquele anúncio. Tive uma gravidez super tranquila, como as outras duas também foram. Trabalhei até quase 9 meses, porque os bebês nasceram com quase 40 semanas.

E aí, depois do parto, ainda no hospital, começou a me bater o desespero. Eu olhava praquelas quatro crianças e não queria ir pra casa. Eu não tinha nenhuma preocupação financeira. A minha rede de apoio era ótima. Mas, mesmo assim, eu fui entrando numa paranoia que só aumentou nos 5 meses seguintes. 


Se os bebês estivessem dormindo, eu queria dar atenção pras mais velhas. Se estava todo mundo dormindo, eu queria estudar para o meu trabalho. Eu não me sentia no direito de descansar. Chorava muito, sentia muita culpa o tempo todo. Não conseguia dormir, não tinha fome. Emagreci bastante. A minha mente foi entrando em curto-circuito. Eu tinha vergonha de ser mãe de 4 crianças. Achava que nenhuma pessoa bem-sucedida podia ter tantos filhos. 


Perdi totalmente o prazer em coisas que eu amava como ler, viajar, tomar um banho de mar. Não queria ver ninguém, nem o celular ou o zap respondia. Basicamente, eu não queria que ninguém chegasse perto de mim. Só queria ficar deitada, isolada.


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Como se não bastasse, eu comecei a me sentir uma péssima oftalmologista por não me dedicar tanto como antes e quis parar de trabalhar. Tudo era "catastrofizante", tudo era desesperador. É como se eu estivesse num transe, não escutava ninguém. Eu queria acreditar que conseguiria cuidar de quatro crianças, trabalhar e ter uma minha vida normal, mas não tinha esperança disso acontecer. 


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Meu marido, que já tinha visto aquele filme, insistiu para eu ir ao psiquiatra. Eu não queria, porque não acreditava que eu pudesse sair do fundo do poço. Mas o meu estado de apatia era tão profundo que eu não tinha reação. Ele marcou a consulta com o médico, foi comigo e falou muito mais do que eu. O psiquiatra não demorou pra dar o diagnóstico. Ele disse: “Isso é depressão pós-parto. Não é frescura e é muito comum. Algumas mulheres têm predisposição genética à depressão, e o pós-parto funciona como um gatilho. Isso é tão simples de tratar… Eu tenho a receita do bolo. Você quer ficar boa?”. Eu nem respondi. O médico prescreveu o remédio e o meu marido já foi logo comprando na farmácia.

Eu passei um tempo me boicotando. Falava que tinha tomado a medicação, mas não tinha. Até que um dia, numa crise de tristeza e desespero, eu percebi que eu estava afetando todos a minha volta, eu estava jogando pro alto uma linda história de amor que gerou uma família tão grande e tão linda. Eu entendi que eu estava destruindo não só a mim. E eu até queria me destruir. Mas eu estava destruindo a vida das crianças. E aí eu decidi dar uma chance. 


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Por 15 dias, eu tomei o remédio certinho. A primeira semana foi desesperadora, porque eu não via melhora. O psiquiatra insistiu pra eu continuar tentando. E aí, duas semanas depois… parece mágica. Eu acordei um dia sem sentir aquele desespero que me dominava todas as manhãs. Eu fui ganhando força pra lidar com a rotina. Viver foi deixando de ser tão difícil. 


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Um mês depois que eu comecei a tomar o medicamento, eu voltei para a terapia. Dessa vez, eu decidi mergulhar no autoconhecimento pra valer. Com a ajuda do psicólogo, eu fui conhecendo os meus traumas de infância. Eu nasci no dia da missa do sétimo dia de meu pai. Ele morreu de acidente de carro. Minha mãe sofreu muito e também ficou sem amparo financeiro. Ela teve que trabalhar muito para conseguir sustentar a mim e a minha irmã, e acabou se fechando para o lado afetivo.


Inconscientemente, eu fui pro extremo oposto, para uma maternidade excessiva. Hoje eu sei que nenhum filho precisa de uma mãe perfeita, aliás nada pior para uma criança do que ter uma mãe perfeita. Criança também precisa da ausência e de frustração para amadurecer. 


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Por indicação do psicólogo, eu comecei a participar de um grupo sobre maternidade. Era uma turma de 15 mulheres que não se conheciam, mediadas por um terapeuta. Naquele espaço, a gente podia desabafar sobre, digamos assim, o lado B da maternidade. A cobrança, o cansaço, a culpa, o impacto no casamento e na vida profissional. Cada uma podia expor as suas vulnerabilidades e encontrar escuta e acolhimento, sem julgamento. 


Quando eu mudei o meu olhar sobre a maternidade, a minha vida profissional também mudou. Eu lembro que, lá no começo da terapia, o psicólogo perguntou quais eram os meus planos no trabalho. Eu achei aquela pergunta tão idiota e pensei: trabalho só serve para ganhar dinheiro, ninguém se realiza com isso.


Aí, um dia, li por acaso numa revista uma reportagem sobre ikigai, uma teoria japonesa sobre propósito de vida. Cada pessoa pode encontrar o seu propósito unindo paixão, missão, vocação e profissão. Aquilo ali me tocou profundamente, e me fez refletir sobre a oftalmopediatria que eu havia abandonado … Decidi que iria complementar a minha pós-graduação em oftalmopediatria, fazendo uma nova especialização. Eu sempre amei e tive um ímã com criança. Hoje eu amo meu trabalho e não sinto a menor culpa de passar tempo longe dos meus filhos por causa da profissão. 


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Como oftalmopediatra, eu tenho contato com mães e bebês, e vejo muito o tal do baby blues. 


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Eu observo que as mães que conseguem falar sobre os sentimentos passam por esse período com mais facilidade. E isso vale pra pessoas de qualquer classe social e econômica. Falar ajuda muito.


Os profissionais de saúde precisam ter um olhar pra condição psicológica das pacientes. Quando os meus filhos gêmeos nasceram, eu tive vergonha de expor a minha frustração pro meu marido, pra minha mãe ou pra qualquer pessoa. Aí, eu mandei uma mensagem pra pediatra dos gêmeos, porque eu não tinha coragem de falar ao vivo. Ela só respondeu assim: “Ah, acontece. Se você tiver muito mal, vai no psicólogo”. Faltou muita sensibilidade à ela.


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A minha motivação para contar essa história foi ter recebido a doação das córneas de uma mãe que se suicidou. Eu trabalho num banco de olhos e tive que ler o prontuário dessa doadora. Era uma mulher com depressão e um bebê de oito meses. O psiquiatra me contou que a depressão pós-parto pode aparecer até o primeiro ano de vida da criança. Ele me falou sobre a importância do pré-natal psicológico, um acompanhamento durante a gravidez pra proteger a saúde mental da mãe.


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Eu aproveitei a gravação desse podcast para conversar com a minha família sobre o que a gente viveu. Esse assunto era um tabu. A minha segunda filha ficou surpresa. “Mãe, você teve depressão!?”. Eu confirmei. Aí ela falou: “Que bom que agora eu sei disso. Você ficou muito estranha naquela época. Eu tinha medo de você”. Outra filha, hoje com 4 anos, recentemente pegou no meu seio e falou: “Esse peito não tinha leite, né, mãe? Só tinha amor. Minha irmã me explicou que, quando a mamãe tá muito triste e preocupada, não tem leite”. Conversar com as crianças abertamente sobre o que aconteceu comigo, aumentou ainda mais a nossa conexão. 


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Até o nascimento dos gêmeos, eu achava que ser mãe era se anular em nome dos filhos. Eu achava que tinha que corresponder aos padrões inalcançáveis que a sociedade impõe sobre a maternidade. Tem que ter parto normal na floresta, tem que amamentar por 5 anos… Tá cruel demais! A depressão, no fundo, me salvou, porque eu me libertei dessas cobranças. Hoje, eu vejo a maternidade como um portal de cura. Eu sou grata por ter tido apoio e acesso ao tratamento. Eu sou grata por poder viver a benção de ter o meu trevo de quatro filhos por inteiro. 


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Leandro Karnal: O depoimento da Thaís é muito interessante. Ela é médica, ela tem informações, ela é preparada pra enfrentar as questões biológicas e psíquicas da maternidade e, mesmo assim, ela se viu envolvida em processos com reações que ela desconhecia nela mesma. Por um lado, uma excessiva dedicação à maternidade, uma quase obsessão em ser uma mãe perfeita. E depois a experiência da depressão pós-parto.


Isso mostra que não depende muito da formação da pessoa, não são as pessoas ignorantes que vão ter depressão pós-parto, qualquer ser-humano, qualquer mulher está submetida a esse risco. Uma das coisas que pode ajudar a superar essa expectativa excessiva é não comprar aquele modelo de que ser mãe é tudo, você vai ser feliz o tempo todo e se você não for perfeita isso vai ser o caos. É preciso incorporar a imperfeição, saber que você vai amar seu filho, vai ser um ser especialíssimo na sua vida, mas você continuará sendo uma mulher, uma profissional, e tem direitos a ter alguns momentos em que você não queira estar 100% do tempo com seu filho.


Isso é saudável, é saudável querer de vez em quando algum afastamento. Cumprir suas funções de cuidado, de alimentação, de defesa de uma criança, mas também saber que a criança precisa de um espaço e você precisa de um espaço. Não há problema em, de vez em quando, não ser uma mãe perfeita e não incorporar essa ideia falsa de que a maternidade é um mar de rosas, uma felicidade total e a negação de um ser-humano, a mulher, pra que ela seja a mãe ideal, a mãe dos sonhos. Isso é falso, e pode ajudar a provocar uma depressão muito grande. 

 

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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.


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Para Inspirar

Estela e Pedro Zanni em "Aceitar mais, controlar menos"

Conheça a história de uma mãe que não viu fronteiras nem físicas e nem simbólicas para que seu filho com Síndrome de Down conhecesse o mundo!

6 de Outubro de 2024



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

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Estela: Algumas terapeutas deram um banho de água fria na gente. Elas achavam que era impossível conciliar as necessidades de intervenção terapêutica de uma criança com uma aventura no mar. Mas a pediatra da Ana, que é especialista em Síndrome de Down, deu muita força para gente. Ela disse que nenhum tratamento seria tão especial quanto a viagem que a gente estava se propondo a fazer.  

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Geyze Diniz: A convivência intensa, a limitação de espaço e a logística do acompanhamento médico da filha mais velha, Ana, que tem Síndrome de Down, não foram impeditivos para a família Zanni velejar pelo mundo. Os pais Estela e Pedro driblaram todos os desafios, instabilidades e surpresas da vida para realizarem o sonho de viver essa grande aventura. Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. 

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Pedro: A ideia de largar tudo para viajar não nasceu de uma hora para a outra, era um sonho antigo nosso. Eu comecei a velejar aos 12 anos, quando um amigo me levou para represa de Guarapiranga, em São Paulo. A partir daí, eu não parei mais e levei comigo meus pais e meus quatro irmãos. Quando eu conheci a Estela, eu levei ela para o nosso veleiro, em Paraty, no Rio de Janeiro. 

Estela: Eu brinco que foi o teste do namoro. O Pedro me perguntou: “Você gosta de acampar? Então, tem um barquinho, que é como se fosse um camping, só que na água”. O barco era bem roots mesmo. A luz era à vela. O banheiro era um balde. Eu sempre gostei de aventura, e naquela viagem ficou claro que a gente tinha muitas afinidades.  

Aos poucos, o Pedro foi me seduzindo com a ideia de uma viagem longa. Em algum momento, eu comecei a me interessar e a perguntar mais. “E se o barco afundar? E se tiver uma tempestade? E se tiver uma calmaria?”. Então ele me apresentou um casal de amigos que tinha viajado pelo mundo com as filhas por 12 anos e eu fui me sentindo mais segura com a ideia.  

Até que um dia eu falei assim: “Beleza, só que a agora a gente só velejou em Paraty, Ilhabela e Ilha Grande. A gente não tem nenhuma experiência fora, vamos fazer isso?”. E aí a gente passou um mês na Grécia, alugou um barco e teve uma experiência super intensa. Foi nessa viagem que eu falei para ele: “Você quer, então, sair pelo mundo? Eu também quero”. 
 

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Pedro: O meu sonho não era fazer uma viagem sozinho ou só eu e a Estela. Eu queria uma viagem com filhos, com todos os desafios e alegrias que essa experiência traz. Só que tinha um detalhe: a gente não tinha filhos ainda. O nosso combinado foi fazer uma viagem de 3 anos, quando a gente tivesse duas crianças em idade pré-escolar. Porque um dos propósitos da viagem era justamente aumentar a nossa conexão com esses filhos que ainda nem existiam.  

E eles precisavam ser pequenos, numa fase em que as crianças ainda querem estar com os pais, em que elas ainda não precisam necessariamente estar na escola. Era uma janela em que a gente ia poder viver plenamente. A gente podia parar de trabalhar e ficar três anos só dedicados a essa experiência em família. 

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Estela: Quando a gente tomou essa decisão, eu já estava fazendo tratamento para engravidar. A Aninha veio depois de cinco anos de tentativas. A notícia da gravidez foi maravilhosa, até que a gente descobriu, num ultrassom de rotina, que ela tinha algumas questões de má formação.  

[trilha sonora] 

As válvulas e as paredes do coração dela não estavam formadas. O tamanho do feto era menor do que a idade gestacional. O osso nasal era pequeno, e o intestino estava obstruído com várias pregas. Segundo a médica, eram indícios de uma síndrome. 

Mas qual síndrome? Podia ser tanto uma Síndrome de Down, que é bastante conhecida e tem uma boa expectativa de vida, quanto podia ser uma síndrome incompatível com a vida. Depois de tanto tempo tentando engravidar, aquela notícia foi um baque bem
desestruturante
 

 

[trilha sonora] 

Pedro: E era Síndrome de Down. Depois do parto, os primeiros oito meses foram os mais difíceis. A saúde da Aninha era muito frágil e, em alguns momentos, ela ficou entre a vida e a morte. De todos os problemas, o mais grave era a cardiopatia. Com quatro meses, a Ana foi internada às pressas, com um derrame pericárdio, que é um vazamento de líquido em volta do coração.

Ela precisou ser operada às pressas, ficou na UTI, e os médicos chegaram a
té a preparar a gente para o pior. 
É claro que, no primeiro ano da Ana, a gente não tinha cabeça para falar sobre a viagem. Mas um ano e pouco depois, a saúde dela estabilizou e a Estela engravidou do Gabriel. E antes do nosso filho nascer, a gente definiu a data exata para zarpar. A Ana teria 4 anos, e o Gabriel 2.  

[trilha sonora] 

Pedro: No final, a parte das terapias da Ana foram a mais fácil de adaptar, porque as profissionais já tinham desenvolvido durante a pandemia a expertise de atendimento virtual. O mais complicado era combinar as nossas paradas com os exames de coração que a Ana precisava fazer. Em muitos casos, a logística envolvia ancorar numa ilha, pegar um avião para um outro lugar, fazer o exame e voltar. E a cada quatro ou seis meses, a gente tinha esse grande evento no nosso roteiro 

Estela: Mas o grande desafio mesmo não foi ligado à parte médica, nem à segurança, como se poderia pensar. Foi a convivência. O veleiro tem 43 pés e 13 metros de comprimento. O espaço interno dele equivale ao de um apartamento de 25 metros quadrados. Nesse cubículo, tinham dois quartos, dois banheiros, uma sala e uma cozinha. Tudo muito pequenininho, tipo uma casinha de boneca. 

Quando você se propõe a estar junto num espaço pequeno 24 horas por dia, você tem que lidar com os conflitos que aparecem. Se surge um desafio, não dá para jogar a sujeira para baixo do tapete. Tem que lidar com ele. Com as crianças, o desafio era a falta de respiro. As crianças demandavam a gente 24 horas por dia, sete dias por semana, sem nenhum escape. Para elas, também era difícil em alguns momentos.

Elas tiveram que lidar com o tédio
e tiveram que se virar com poucos brinquedos. Mas esses desafios também têm a sua beleza. Para nós, enquanto casal, ter que lidar com as turbulências aprofundou a nossa conexão. Para as crianças, o tédio se transformou em criatividade. Um brinquedo quebrado continuava a ser uma fonte de alegria. A embalagem de um produto virava uma diversão de três horas. E eles aprenderam a contemplar a natureza e a verbalizar isso para gente.
 

[trilha sonora] 

Algumas pessoas nos perguntam: “Ah, mas as crianças vão lembrar da viagem?”. Eu acho que elas não vão lembrar de todas as situações, mas vão ficar sim com a memória afetiva de terem um contato grande com a gente, um contato grande com a natureza. E acho que vão ficar com uma estrutura interna emocional muito bem formada para a vida. 
 

[trilha sonora] 

Estela: Uma das melhores partes da viagem foi acompanhar a evolução da Aninha. Ela tem um atraso motor importante em relação a outras crianças com trissomia do 21. As crianças com Síndrome de Down, em geral, começam a andar mais ou menos com 2 anos. A Ana com 3 anos e meio ainda se arrastava de bumbum. Ela não engatinhava. Ela jogava o bumbum para frente e ia trazendo o corpo com a perninha. 
 

Nos consultórios, os fisioterapeutas montam balanços e simulam vários movimentos, que é para a criança desenvolver equilíbrio e a força motora. E aí, a gente se deu conta que, no barco, a Ana tinha esse balanço 24 horas por dia, enquanto nos consultórios as crianças só têm uma hora por semana. Antes da viagem, por muito tempo, ela ficou no mesmo platô de desenvolvimento. E aí, em seis meses no barco, ela era outra criança, completamente transformada. 

 

Pedro: A Ana tem os pezinhos bem virados para dentro, então ela precisava usar uma palmilha para alinhar os pés. Mas a médica falou pra gente que o melhor tratamento mesmo era ela caminhar na areia. Resultado: a gente não precisou de palmilha a viagem toda.  

O Gabriel também teve um desenvolvimento muito legal. Ele começou a se envolver muito nas atividades do veleiro. Ele era super interessado por qualquer manutenção que eu fizesse no motor ou na estrutura do barco. Ajudava a Estela a preparar a comida, a pôr a mesa, a guardar as compras, a levar o carrinho no supermercado. E ele aprendeu a ficar mais atento à natureza.

No barco, você é muito mais influenciado pela chuva, pelo vento, pela 
noite, neblina. O Gabriel sabia que, se estava ventando demais, a gente não ia sair. Se o vento estava contra a navegação era de um jeito. Se estava a favor, era de outro.
Nas primeiras noites que a gente dormiu fora do barco, quando a viagem acabou, o Gabriel falou: “Puxa, papai, é mais difícil dormir aqui do que no barco, porque não balança”.

Hoje, a gente mora numa casa que tem quintal grande, com bastante verde e vista
para o céu. E num dia desses, o Gabriel me falou: “Papai, você sabia que sempre o sol nasce lá e se põe lá?”. No barco, sempre em movimento, claro que ele não conseguia fazer essa conexão.




[trilha sonora] 

Estela: A gente percebeu que a viagem teve um impacto não só na nossa família. Teve também em quem acompanhou a aventura com a gente. Quando eu decidi criar uma página no Instagram, a ideia era falar sobre liberdade pra pessoas com algum tipo de deficiência. E aí, os seguidores chegavam no nosso perfil curiosos, porque viam um casal com dois filhos pequenos e uma menina com Síndrome de Down.

E
acabou virando uma via de mão dupla, porque os relatos dos seguidores também inspiravam muito a gente continuar compartilhando a nossa vida nas redes sociais. 
A gente tem algumas lembranças muito marcantes. Uma delas foi da mãe de um menininho de 2 anos que tinha epilepsia. Ela tinha muito medo de sair com a criança para qualquer lugar.

Um dia, ela mandou um inbox falando
que estava se permitindo explorar, sair um pouco mais de casa, e estava até pensando em fazer uma viagem com o filho. 
Teve também um rapaz de uns 30 e poucos anos que foi aluno do Pedro e escreveu: “Mano, eu não sabia nada sobre Síndrome de Down, fiquei sabendo pela página de vocês, conhecendo a Aninha. Eu queria contar que a gente está grávido e acabou de descobrir que o nosso bebê vai ter Síndrome de Down. Mas essa notícia  [sendo] super tranquila, porque a gente sabe que dá para ter uma boa vida, que nosso filho pode ser feliz”.  

[trilha sonora] 

Pedro: A viagem tinha começo, meio e fim por vários motivos. Primeiro, porque a gente queria voltar a trabalhar e precisava voltar a trabalhar. Porque as crianças também precisavam ir para escola. E também porque a vida é feita de ciclos. A viagem acabou com uma sensação de conquista, de algo que você planejou e realizou. E também com uma sensação de que tudo é possível, com determinação e também com uma habilidade que a gente desenvolveu bem, que é a flexibilidade.  

Estela: O Pedro e eu somos super planejados, mas a gente aprendeu na viagem a querer controlar menos a vida e a aceitar mais as coisas como elas são. Quando você faz uma travessia do Atlântico, você mais ou menos planeja a data da saída e da chegada.

Mas aí, perto do dia de zarpar, aparece uma previsão meteorológica ruim. E não dá
pra cruzar o oceano em 17 dias se você tem quatro dias de combustível. Você precisa de vento. Então, se não tiver uma boa condição de tempo, não pode sair. E é a mesma coisa se você es numa ancoragem e o vento muda. Você tem que mudar de lugar, mesmo que você goste dali e queira ficar por lá mais tempo. 
 

A viagem foi como a vida. Cheia de instabilidades. Cheia de imprevistos. Cheia de desafios. Mas também cheia de pequenas e grandes alegrias. A gente voltou dessa experiência com a lição muito clara de se entregar ao fluxo da vida, aceitando mais, e querendo controlar menos. 

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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae. 

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