Para Inspirar

Tamara Klink em "A minha viagem despertou travessias em outras pessoas"

A oitava temporada do Podcast Plenae está no ar! Confira a história da navegante Tamara Klink. Aperte o play e inspire-se!

22 de Maio de 2022


Leia a transcrição completa do episódio abaixo:


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Tamara Klink: Eu sabia, racionalmente, que a ideia de atravessar o Atlântico sozinha não era exatamente a melhor do mundo naquela hora. Eu não tinha a experiência necessária para uma aventura desse porte, nem dinheiro. Meu barco era velho, pequeno, não exatamente super seguro e o trajeto era bem longo. Se eu falasse pra minha mãe, eu com certeza ia desistir, porque ela ia me transmitir os medos inevitáveis que ela teria. Foi por isso que eu só contei pra minha avó. Ela me disse: "Mas Tamara, por que sozinha? Você não pode levar uns dois idiotas com você?”. Sem pensar muito, eu respondi: “Se eu posso contar com dois idiotas, eu também posso contar comigo mesma, né?”

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Geyze Diniz: Ela percorreu mais de 1.700 milhas e atravessou o Atlântico aos 24 anos. Muitos falam que ela estava sozinha nessa travessia. Ela diz o contrário. Conheça a história da doce e corajosa Tamara Klink. Ouça no final do episódio as reflexões do rabino, escritor e dramaturgo Nilton Bonder para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.


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Tamara Klink: A minha ideia original era atravessar o oceano num barco novo. Durante dois anos eu formei um time, desenhei o projeto e busquei sem cansar patrocínio pra construir esse veleiro. Eu fiz reuniões com pessoas de altos cargos que pareciam muito interessados em entrar no projeto. Em momentos decisivos, de vez em quando, surgia uma pergunta: “O que a gente vai fazer com a imagem da nossa marca se essa menina morrer no mar?”. 


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É verdade que eu nunca tinha feito uma travessia solo. Entendi que eu mesma precisava me dar os meios de começar de algum jeito. Pela internet eu conheci uma pessoa que estava disposta a me ajudar. Um professor de engenharia naval chamado Henrique que morava na Noruega e seguia o meu canal no Youtube. Ele tinha um barco que ele nunca usava e me convidou para ir para lá e usar esse barco dele durante as férias. Quando eu cheguei a gente conversou um pouco e em 15 minutos ele me disse uma frase que mudaria tudo: “Tamara, pra você ser comandante mesmo, você precisa ter seu próprio barco, porque só assim você vai poder tomar suas decisões com autonomia, sem precisar perguntar nem pedir autorização pra ninguém”.


A gente começou a ir atrás de uns veleiros num site de venda de usados. Pensei que seria uma boa ideia começar com algo pequeno, simples, antigo. Pequeno para os esforços não serem tão grandes para meus braços ainda finos. Antigo porque eu sabia que os cascos antigos eram mais espessos. Simples porque eu tinha muita coisa pra aprender. 


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Na internet, a gente achou uns dois barcos: um era legal, o preço um pouco alto e o antigo dono um pouco frio. O segundo não estava no melhor estado do mundo, entrava água por furos no cockpit que nunca tinham sido cobertos, tinha um probleminha no motor que cuspia água de refrigeração pra dentro de um balde que ficava dentro de outro balde que eu tinha que esvaziar a cada duas horas e metade do barco tinha sido queimada por um incêndio. Mas eu gostei do antigo dono e ele gostou do meu projeto. Ele topou me vender pelo preço de uma bicicleta e me deu a chave antes mesmo de saber meu nome. 


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A minha avó, a única pessoa da família que sabia do meu plano, minha confidente, escolheu o nome do veleiro. Ela propôs o nome de sardinha e eu gostei. É um peixe pequeno pro qual ninguém dá muito valor, mas que ao mesmo tempo é um peixe pelágico que vence grandes distâncias e nunca está sozinho, ele sempre nada em cardume. Mesmo na conserva, as sardinhas vêm juntas. É, o meu plano tinha mudado de construir um barco voador, relativamente complexo pra um barco de passeio de fim de semana, 26 pés, 8 metros de comprimento. Era mesmo uma sardinha, mas era o bastante pro que eu queria. 


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Eu levaria o barco até a França. Mil milhas pela frente, um mês de navegação. Eu era um tanto inexperiente, ainda não sabia parar um veleiro numa vaga de porto, eu nunca tinha tido a chance de tentar, ninguém nunca tinha me dado o leme de um outro barco pra fazer isso. Eu aprendi a fazer manobras com velas grandes, ainda não sabia como escolher qual vela colocar ou quando abaixar o pano, porque eu nunca tinha sido comandante, eu sempre fazia o que me falavam pra fazer antes de saber o motivo. É Tamara, só dá para aprender a navegar solitário navegando solitário.  


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Atravessar o mar do norte tem um certo desafio de cruzar com centenas de embarcações e navios carregando containers. É uma região com um enorme fluxo de navios. Eu achava que a Sardinha era um pouco pequena para esse trecho, mas a gente lidou bem com as adversidades. Comecei aos poucos a ficar segura com ela e mais segura comigo. É, de repente, a gente já tem o que precisa pra ir bem mais longe do que a gente pensa. 


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Assim que eu cheguei na França, eu tive a certeza que a gente podia fazer um trajeto quatro vezes maior, mas faltava. Precisava de recursos financeiros pra preparar a viagem, pra esse trecho que seria um tanto mais perigoso. Eu estava acostumada com negativas, eu já tinha passado por muitas. Mas, pelo menos dessa vez, uma busca por patrocínio eu tinha mais que uma ideia pra mostrar, eu tinha um mapa com meu trajeto traçado, eu tinha argumentos, eu tinha histórias, eu tinha dados, eu tinha as marcas na minha mão. Consegui marcar uma reunião com a Luiza Trajano, uma pessoa que pra mim parecia tão inatingível. No dia que eu a conheci, não parava de entrar e sair gente da sala, tinha pessoas de grandes cargos com muita responsabilidade ligando pra ela o tempo todo, e eu tentava conquistar um pouco de atenção pra falar da minha viagem, com uma certa vergonha do meu veleiro pequeno e antigo. De vez em quando, eu pensava: "Acho que não tenho muitas chances." Mas, para minha surpresa, ela viu a viagem de outro jeito. Ela gostou da ideia justamente porque eu mostrava que era possível ir muito longe com muito pouco e me disse que essa viagem tinha o poder de inspirar muitas mulheres. Aí eu fiquei pensando: “Mas será que eu tenho legitimidade pra inspirar alguém? Parece um objetivo tão abstrato. Mas, se ela disse, eu vou acreditar”. 


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Me planejei para sair no verão de 2021, pra aproveitar os ventos um pouco mais favoráveis do Golfo da Biscaia e também porque ia coincidir com o fim dos meus estudos. No dia que eu apresentei meu trabalho de conclusão de curso, eu corri pro barco, que estava em Lorient, na Bretanha. Durante um mês, eu pintei o fundo, eu refiz as vedações e fiz uma série de reparos e revisões pra deixar a França. Todas as vezes que eu planejei sair, o vento virava, tinha algum problema técnico e eu tinha que remarcar a data da partida. 


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Deixei Lorient em 11 de agosto, um dia de sol. As partidas são momentos de muita mistura de sentimentos. Eu tinha uma tristeza enorme por estar partindo da França. Simbolicamente, eu estava deixando para trás o país onde eu escolhi fazer meus estudos, onde eu ganhei autonomia, onde aprendi a navegar comigo mesma. Estava deixando para trás também um pedaço da minha história, amigos, namorado e partindo pro desconhecido absoluto. Essa viagem certamente ia me transformar de algum jeito. Quem eu serei quando eu chegar? Como a minha família vai ver isso? Como os outros, as pessoas que moram no Brasil, vão viver a minha viagem? Eu vou conseguir? E se não der certo?


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Os próximos 3 meses eram uma incógnita. Eu passava a maior parte do tempo navegando. Tinha três paradas previstas: Portugal, em Las Palmas na Espanha e em Cabo Verde, antes de chegar ao destino final, Recife.
 

Havia perigos reais na rota que eu fiz, desde possíveis encontros com orcas que atacavam os veleiros na costa de Portugal, até piratas ou o risco de bater em containers que flutuam no mar. Mas o primeiro perrengue que eu tive foi outro: uma enorme calmaria. A gente costuma imaginar que o perigo no mar vem em forma de tempestades ou ondas gigantes. As calmarias são momentos onde a gente fica sem nenhum controle, nem sobre a nossa direção. São períodos de pouquíssimo ou zero vento, são extremamente duras, principalmente pra dentro, pro nosso emocional. A gente dá tudo de si e avança quase nada. 


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Peguei uma calmaria logo no começo. Além de não ter vento, a corrente marítima estava contra. Eu tinha perdido a hélice do motor e fui carregada em direção às pedras, sem poder fazer nada pra impedir. Parece um pouco absurdo, mas a solução que eu encontrei foi ir em direção às pedras, eu colocava o barco no sentido da corrente, o nariz apontado pro perigo e pegava velocidade pra desviar. Foram 3 horas de muita tensão, mas foi o único jeito de eu ter manobrabilidade e ganhar tempo. Eu sabia que, a cada 6 horas, a corrente mudaria de sentido naquele pedaço da costa francesa.


Também tive calmaria no Golfo da Biscaia, entre a França e a Espanha. A minha cabeça começava a enlouquecer: “Será que vai durar pra sempre?” Começava a contar as garrafas de água que ainda tinham no barco. Se eu ficasse 10 dias daquele jeito, não sei se teria água o suficiente pra chegar no porto mais próximo. 


Quando a gente está parado no mesmo lugar, é mais fácil a gente perder a noção do risco e fazer bobagem. É nessa hora que a gente se distrai, que a gente sai sem colete salva-vidas, porque o mar tá um espelho e parece que não tem perigo. É quando a gente esquece de olhar o nível das baterias, porque tem tanto sol, é aí que a gente se acomoda. Quando tem água entrando por todos os lados, a gente nunca fica tranquilo. No mar, o maior perigo talvez seja baixar a guarda. Seja achar que a gente está no controle da situação, seja achar que a gente é inatingível ou invencível. 


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O segundo momento de dificuldade foi na costa de Portugal. Aí foi o contrário: muito, muito, muito vento e ondas curtas e altas. Fiquei com muito medo. Em alguns momentos, eu senti que uma ou outra avaria podiam por tudo a perder. Entrava muita água dentro do barco, eu perdi o leme de vento, que é uma espécie de piloto automático mecânico e rústico que para mim era fundamental. O barco parecia tão frágil naquele mar que, quando o leme quebrou, foi muito assustador ficar na mão. Eu tentava me acalmar, respirava e pensava: “Tamara, fica tranquila, no futuro será muito pior, no futuro os ventos serão mais fortes, as ondas serão maiores e mais curtas, aproveita agora, usa essa experiência pra aprender alguma coisa”. 


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O futuro chegou bem rápido. No trajeto mais longo da viagem, os 17 dias entre Cabo Verde e Recife, eu peguei um série de pirajás, que são essas nuvens escuras que fazem mini tempestades, com vento, chuva e onda. Um dos pirajás me deixou exausta e levou embora as minhas luzes de navegação, a minha antena e queimaram os meus 2 pilotos automáticos, o oficial e o reserva. Eu tive que passar mais de 30 horas com a barra do leme na mão. Às vezes eu sentia muita fome e eu sabia onde estava a comida, que ficava a menos de 2 metros dali, e eu não podia sair pra comer. Às vezes eu queria dormir e eu sabia que eu não podia. Quando eu não tinha mais força, eu pensava em outras viagens, em pessoas, em outros barcos que tinham passado por situações que pareciam muito mais difíceis que a minha. Eu lembrava que meu pai atravessou o Atlântico a remo e deixava de reclamar por estar segurando uma barra. "Pelo menos eu não estou nem remando". Quando eu sentia que meu barco não avançava, eu lembrava que as caravelas avançavam muito menos e que ainda por cima não conseguiam avançar contra o vento. 

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Era difícil lidar com a carência. Desde que eu parti da França, eu era a minha principal e exclusiva fonte de carinho. Às vezes eu me sentia esvaziada, sentia saudades da minha família, eu pensava no meu namorado, a muitas milhas dali, e nos meus amigos que eu não sabia se chegaria a rever. Em outros momentos, eu questionei: “O que eu estou fazendo aqui? Por que eu vim tão só pra esse lugar? Que é lugar nenhum.” 


Minha comunicação no barco era um tanto limitada. Eu envia e recebia mensagens de 160 caracteres e às vezes elas levavam mais de 24 horas pra sair do barco, atravessar a estratosfera, encontrar um satélite em órbita e voltar pra outro ponto da Terra, onde um amigo ou um familiar receberia "bom dia".


Na navegação em solitário, a gente parte de um porto e fica dias, semanas sem ver ninguém. A gente toma decisões sem ter com quem compartilhar. Às vezes a gente se sente em perigo, a gente tem dúvidas se vai chegar onde a gente queria e às vezes a gente tem dúvida se vai sobreviver. O mar exige que a gente aguente situações que, às vezes, a gente acha que não suporta. Sem descanso, sem distrações e com o mínimo conforto, é uma solidão profunda. 


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Mas também tem partes incríveis. A bordo, eu podia inventar as minhas próprias regras,  podia seguir o fuso horário do lugar que eu quisesse, podia acordar com o som dos golfinhos atravessando o casco, eu podia varar uma noite debaixo de um céu 100% estrelado, podia ficar sem roupa, trocar o café da manhã pelo jantar, identificar espécies marinhas que pegavam carona no guarda corpo. Eu podia estar em lugares muito diferentes, cruzar linhas imaginárias dos trópicos e saber que cada chegada era inquestionável.


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Três meses depois da partida, eu cheguei ao Recife, onde encontrei a minha família me esperando. Eu me achava às vezes tão egoísta de estar navegando só, mas descobri que eu não estava sozinha naquele barco. A viagem foi vivida por muitas pessoas e despertou múltiplas travessias. Meninas, meninos, homens, mulheres, idosos e idosas que talvez nunca pensaram em navegar me escreveram dizendo que começaram a fazer aulas de vela, ou que tomaram coragem para ter uma família, adotar crianças, se separar, mudar de estado, de profissão, de curso acadêmico e tomar outras decisões importantes. Acho que a Luiza tinha razão. Sem saber, a viagem inspirava muitas outras travessias. 


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Sonhei grande, mas eu me permiti começar pequeno. Todos nós temos alguma coisa que nos orienta e que às vezes parece tão absurda que talvez nem receba a atenção devida. Eu acho que sonho não é algo que a gente decide ter. Ele está lá, dentro da gente e a gente precisa desvendar qual ele é e começar a tomar decisões, mesmo que pequenas, de algum jeito para ele se tornar real. Talvez o meu barco não fosse o barco que eu mais sonhei, talvez não era o que eu mais queria e eu sabia que eu corria o risco de ele não chegar até o final. Mas eu me permiti correr esse risco e me permiti me aproximar cada vez mais do meu objetivo. 


Durante a viagem, a escrita foi um instrumento importante pra aplacar a minha solidão. As páginas do diário funcionavam como o reflexo do espelho que eu não tinha. No texto, eu podia interagir comigo mesma.


“É assim que acaba?

No escuro da noite,

a voz das irmãs e primas de longe,

acenos ao longo do canal


ficaram os peixes voadores

ficaram as noites solitárias

ficaram as conversas com o silêncio


5.600 milhas náuticas me trouxeram de volta pros braços da minha avó.


É assim que acaba,

com um novo começo.”


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Nilton Bonder: Tal como a vida, é a metáfora de sua viagem que nos apresenta os desafios das tormentas e das calmarias. O que fazer quando estamos em crise e o que fazer quando o telefone não toca, mensagens não chegam e a vida parece à deriva, estagnada. Um soco no estômago, esse tal de você dar o melhor de si e não sair do lugar. As calmarias desativam a atenção, recurso fundamental no mar e na vida. Outro artifício básico é saber diminuir o drama. Olhar o meio copo cheio ao invés do vazio. Comparar sua velocidade frustrante com a das caravelas que até para trás iam, ou o cansaço de estar por 30 horas junto ao timão lembrando do pai que tinha que remar para sair do lugar. Tamara sabe também que navegar é preciso, mas só se for cheia de vontade. Os recursos motivacionais são tudo. Ir de encontro aos braços da avó ou inspirar mulheres como sugere e desafia Luiza Trajano, além de romper com limites, são o sopro maior de suas velas. Tomar risco é maravilhoso, mas fica a advertência das TVs, pra não fazer isso sem a presença de um adulto. O adulto aqui é você mesmo quando algo maduro, amadurecido em você é capaz de transformar uma loucura numa grande aventura e conquista. 


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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.


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Para Inspirar

Marcela Barci em "Maternidade atípica"

Conheça a história da mãe que se descobriu em muitas camadas ao vivenciar uma maternidade atípica.

3 de Novembro de 2024



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora] 

Marcela Barci: Eu tinha 27 anos quando as gêmeas foram diagnosticadas. Até então, eu nunca tinha tido nenhum problema. Eu nasci numa família muito estruturada, com uma boa condição financeira. Eu estudei numa escola legal, fiz intercâmbio, viajei... Sabe aquela vida ideal? Até então era assim. Só que o lado B de viver num conto de fadas é que eu não tinha preparo emocional para enfrentar nada. 

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Geyze Diniz: A influenciadora Marcela Barci tinha o sonho de ser mãe, mas em seus planos nunca passou a ideia de ter filhas atípicas. A chegada das gêmeas Pietra e Sofia, diagnosticadas com autismo severo, transformou a vida dela, de seu marido e da filha mais velha, Valentina, trazendo muitas lições, desafios e um propósito de vida. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. 

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Marcela Barci: O maior sonho da minha vida era ser mãe. Acho que por eu ter uma relação maravilhosa com a minha mãe, eu queria muito poder ser pra alguém o que a minha mãe é pra mim. E eu sempre quis ser mãe nova. Eu conheci o meu marido quando eu tinha 19 anos. Fiquei noiva com 20 e me casei com 21. Dois anos depois, eu engravidei da Valentina. Mas uma só era pouco. Quando a Valentina tinha um ano, eu engravidei de novo, e dessa vez de gêmeas. 
 

Foi uma gravidez tensa. Primeiro, por descobrir que eram dois bebês. Segundo, porque eu tive vários sangramentos que me deixavam apavorada. E terceiro, porque eu precisei fazer repouso total por quase três meses, até a Sofia e a Pietra nascerem, de 37 semanas. Mas a parte mais tensa ainda está por vir. Quando as meninas tinham 9 meses, eu comecei a desconfiar de algo errado. A Valentina tinha pouca diferença de idade delas. Então, era inevitável comparar o desenvolvimento das minhas filhas. 

 

Eu achava muito estranho que as gêmeas não me olhavam. Por exemplo, na soneca da tarde, quando eu ia acordar a Valentina, ela já olhava pra mim e dava um sorriso. Nunca tive isso com a Sofia e com a Pietra. As duas não olhavam no meu olho em nenhum momento, nem quando a gente estava lá, cara a cara. Quando eu chamava pelo nome, elas nem me respondiam.

No começo eu pensei que elas pudessem ter um problema de audição. Depois eu achei que elas não reconheciam quem era quem, porque eu já chegava chamando as duas
ao mesmo tempo. Aí, no parquinho, eu comecei a fazer comparações. Enquanto as outras crianças arrastavam um carrinho, as minhas filhas ficavam girando a rodinha do brinquedo por um tempão. 
 
 

Até que eu fui pro Google e digitei: “Minha filha tem 9 meses e não olha no meu olho”, “Minha filha fica girando a rodinha do carrinho”. Toda vez que eu escrevia alguma coisa, apareciam conteúdos do tipo: “Os cinco primeiros sinais de autismo no seu filho”. Na hora que eu comecei a ler as reportagens, eu fui identificando padrões que as meninas faziam e que eu achava ok.

Um vídeo no YouTube mostrava uma criancinha de 1 ano
fazendo
flapping, que é um gesto de balançar as mãos no ar, um movimento repetitivo. As meninas faziam isso direto, principalmente quando elas estavam felizes. Um dia eu cheguei pro meu marido então, e falei: “Léo, você não sabe. As gêmeas são autistas”.  

[trilha sonora] 

Ele falou assim: “Não
! Da onde você tirou que elas são autistas? Você sabe o que é autista? Marcela, você já conviveu com algum autista?”. E eu falei: “Não, mas eu li na internet. E as meninas têm os traços”. “Ah, pelo amor Deus! Você procurando pelo em ovo! As gêmeas não têm absolutamente nada! O desenvolvimento de gêmeos é completamente diferente. Eles têm um atraso porque são duas, é normal.”
 


Eu falei: “Léo. As meninas nem balbuciam. Elas não emitem som. Elas não olham pra gente”. Ele, lógico, achou que eu estava neurótica, e aí eu resolvi procurar o pediatra. Quando eu liguei, ele me falou: “Magina! Você tem que se acalmar. Você tem que ter um pouco de paciência. Marcela, você precisa voltar a trabalhar e ocupar a sua cabeça”. Eu me sentia completamente sozinha, mas continuava achando que tinha alguma coisa errada com as meninas. Mãe, né? 

[trilha sonora] 
 
Aí eu comecei a fazer testes. Tipo, eu me escondia e chamava o nome delas pra ver se elas olhavam. Se elas olhavam, eu falava: “Aí, graças a Deus, elas não são autistas”. Dali a 5 minutos, eu chamava de novo. Elas não olhavam e eu voltava a ficar angustiada. Eu mergulhei de cabeça nesse universo do autismo. Comecei a seguir famílias de autistas e gente especializada nas redes sociais. Quanto mais eu via conteúdos, mais eu tinha certeza.

Chegou uma hora que eu resolvi sair da internet e marcar consultas com vários profissionais d
a saúde. Eu procurei pediatra, neurologista, psiquiatra, psicólogo. Ao total, foram onze profissionais. E os onze falavam que as meninas não tinham nada, e que eu precisava ser paciente com o desenvolvimento delas. 
 

Então, quando as gêmeas tinham 1 ano e 9 meses, a gente foi pra inauguração de um hotel perto de São Paulo. O hotel tinha convidado algumas influenciadoras e uma delas era Suzana Gullo, que tem um filho autista, o Romeo. Eu não conhecia a Suzana, mas tomei a coragem e fui falar com ela. Eu me apresentei, resumi a minha história e pedi a opinião dela.

A gente passou um tempão conversando e ela falou: “Olha,
pra acabar com essa angústia, tem um médico maravilhoso que diagnosticou o Romeo. Eu confio nele de olhos fechados. É super difícil conseguir consulta com ele. Mas, se você quiser, segunda-feira eu ligo no consultório. E se esse cara falar que elas não são autistas, é porque elas não são”. 
 

Isso foi num sábado. Na segunda-feira, a Suzana me avis
ou que conseguiu um horário com o médico naquela tarde. Mais do que isso: ela fez questão de ir comigo na consulta. Nós duas entramos no consultório com Sofia e Pietra. E em 10 minutos de conversa, o médico olhou para mim e falou: “As duas são autistas”. 
 

[trilha sonora] 

Na hora que eu ouvi aquelas palavras, eu comecei a chorar. E eu chorei muito, muito. Era um choro de choque, com desespero, mas ao mesmo tempo de alívio. Eu não estava ficando louca. Eu só não fiquei mais perdida, porque a Suzana segurou minha mão e falou: “A gente tá junta pro resto da vida”. Ela me indicou as terapias e os melhores profissionais que eu precisava procurar. No meio desse caos, eu só queria o colo da minha mãe.

De um dia
pro outro, a minha vida virou do avesso. Aquele castelo que eu tinha idealizado na minha cabeça desmoronou. Toda a ideia de ter três filhas que iam ser melhores amigas, que iam fazer intercâmbio juntas, que iam pra faculdade... Não existia mais. As viagens pelo mundo que tanto eu sonhei em fazer com as três não iam rolar. O roteiro que a gente romantiza é você ter um filho, esse filho crescer, trabalhar, se tornar independente e futuramente até te dar netos. 
 

 

Como seria ter dois bebês pro resto da vida? Será que eu ia ter condições emocionais e financeiras pra cuidar das meninas? Como que ia ser no dia em que eu e o Léo não estivéssemos mais aqui? E a Valentina nessa história? Como ia ficar a vida dela? Eu não tinha bagagem emocional pra lidar com aquela carga. E também não tinha tempo pra ficar deitada na cama chorando. Como mãe das meninas, o único caminho possível era seguir em frente. E assim eu fui obrigada a amadurecer. Na marra. 

[trilha sonora] 
 

Num primeiro momento, eu não quis contar pra ninguém. Eu ainda não tava preparada pra escutar a opinião dos outros. Primeiro, eu precisava entender o que que era o autismo. Segundo, eu precisava entender como ia ser a minha vida dali em diante. Eu queria me estruturar, pra depois conseguir abrir meu coração pras outras opiniões alheias. Porque a partir do momento em que você conta pras pessoas, elas se sentem na liberdade de palpitar.  

 

Pau um ano e só quem sabia do diagnóstico das meninas eram eu, o Léo, meus pais, minha vó, meu sogro e a Suzana. Um dia, num jantar na casa da minha vó, eu disse que tinha muito medo do preconceito que a Sofia e a Pietra iam sofrer. Daí o Léo parou, olhou pra mim e falou: “Má, você tem medo, mas você é a mãe delas e tendo preconceito. Por que você não quer contar pras pessoas que elas são autistas? Se você quer que seja uma coisa normal, torne isso uma coisa normal. Fale sobre o assunto”. 

 

Eu tomei um susto, e a fala dele virou uma chavinha na minha cabeça. Na mesma noite, eu gravei um vídeo contando tudo sobre o processo e o diagnóstico das meninas. Depois de 15 dias, eu postei esse vídeo no Instagram e recebi uma enxurrada de mensagens. “Ai, mas eu não acho que suas filhas são autistas”; “Mas você tem certeza?”; “Leva a sua filha pra tomar um passe”; “Vai no médico tal”; e assim por diante. 

Só que naquela altura eu já estava preparada pra encarar esses comentários. Falar publicamente sobre o autismo tirou um peso das minhas costas. E mais do que isso: me deu um propósito de vida. Do mesmo jeito que a Suzana me ajudou, eu tento hoje ajudar outras pessoas que tão nessa situação. Eu amo falar sobre autismo. Eu amo que me perguntem sobre isso. Até porque hoje é uma coisa mais leve para mim.  

[trilha sonora]
 

As gêmeas têm autismo severo. Elas tão com 6 anos e não falam. Mas com muita terapia e principalmente, muito amor elas tão ganhando autonomia. Elas vão ao banheiro sozinhas, elas abrem a geladeira, comem, tomam água, andam e se comunicam pelo iPad. Faz uns dois anos que elas começaram a trocar mais afetos comigo. Elas me olham, me abraçam, me beijam e dão aquele sorriso gostoso de orelha a orelha. 

Eu e a Valentina também fomos para a terapia, é claro, e encontramos o nosso espaço nessa dinâmica familiar. Em vários momentos, ela chegava em casa e queria me contar uma coisa que aconteceu na escola ou alguma história, mas eu estava sempre ocupada com a Sofia e com a Pietra. Outro dia eu tinha que sair correndo e ela me falou: “Mamãe, sabe qual que é o meu sentimento? De raiva, porque você foi ficar com a Sofia e com a Pietra em vez de ficar comigo”. E eu falei: “Filha, você es certa. A próxima vez a mamãe não vai fazer isso. Você vai junto comigo e a gente vai conversar e explicar para suas irmãs que agora é o seu momento”.

Hoje em dia, se acontece alguma coisa, ela já olha pra
Sossô e pra Pipi e fala: “Sô, Pi, agora é o meu momento”. 
E várias vezes eu também falo pra ela: “Valen, a mamãe tá chorando porque a mamãe tá preocupada com as suas irmãs”. Eu quero que a Valen entenda que eu também fico triste, eu também tenho raiva, eu também fico irritada, e eu também fico muito cansada. A Valentina só tem 8 anos e já me perguntou: “Mamãe, eu que vou ter que cuidar das minhas irmãs quando eu for adulta?”. Eu respondi: “Filha, essa responsabilidade não é sua, é da mamãe e do papai”.  

[trilha sonora]
 

Eu sei que a minha experiência com a maternidade atípica é muito diferente da maioria. Eu tenho consciência de que a luta real es com aquelas mães que vivem em comunidades, onde o filho só tem 30 minutos de tratamento por semana. Ou na mãe que foi abandonada pelo marido e não pode trabalhar porque não tem com quem deixar o filho. A minha realidade é bem fora da curva, talvez 0,1% da população. 

Nas minhas redes, eu gosto de tratar o assunto com leveza, porque a vida de uma mãe atípica, ela já é pesada e demandante. Na troca com outras mães eu aprendi que, às vezes, a dica de uma mãe vale mais do que a de qualquer especialista que não tem um filho autista em casa. 

C
om o tempo, eu aprendi a respeitar o limite das minhas filhas, a comemorar as pequenas conquistas e a viver sem criar tantas expectativas. Esse caminho deixou tudo mais leve, fez a maternidade ficar mais gostosa. A Sofia e a Pietra me ensinaram a viver um dia de cada vez e a encontrar felicidade em coisas que antes eu não dava nenhum valor. Na internet, as pessoas romantizam o autismo. Muita gente me fala que as minhas filhas são um "presente de Deus" ou que eu e meu marido somos "especiais".

Mas a real é que todo mundo quer um filho saudável. Ter uma criança atípica em casa é uma luta diária, é desafiador. Mas, ao mesmo tempo, é uma
oportunidade incrível de crescimento e de descobrir forças que a gente nem sabia que tinha. No fim das contas, eu aprendi que, mesmo com as dificuldades, é sim possível construir uma vida plena e cheia de amor.

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