Para Inspirar

Roman Romancini em "Os ensinamentos da montanha"

Na décima primeira temporada do Podcast Plenae, ouça a trajetória de tirar o fôlego sobre a escalada de Roman Romancini.

13 de Março de 2023



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora]

Roman Romancini: As memórias mais vivas daquele momento são as dos sons. Do barulho da freada, dos gritos de susto, da pancada no carro…  A completa ausência do som enquanto o mundo girava ao meu redor… E aquele familiar e dolorido barulho de galho seco quebrando quando meu fêmur estilhaçou… Por fim, os gritos de dor. Assim que eu caí no chão, soube que algo estava errado, mas eu não imaginava a gravidade do acidente. Só tive a dimensão quando cheguei no hospital. Naquela sala de "ressuscitação".  Meu pânico foi tanto que eu só pensava em sobreviver. Meu maior sonho: escalar o Monte Everest, um sonho para o qual eu vinha me preparando durante toda a minha vida e embarcaria dali a 40 dias, já não era uma prioridade, ao contrário, agora era uma impossibilidade. [trilha sonora] Geyze Diniz: Roman Romancini estava prestes a realizar o seu maior projeto quando teve o seu sonho atropelado. Adepto do esporte a vida toda, não poderia imaginar que, além do atropelamento, outras adversidades de saúde pudessem atrapalhar ainda mais o seu projeto de vida. Nada disso, porém, fez com que ele desistisse dos seus planos. Pelo contrário, tudo isso virou insumo para que ele ganhasse mais resistência e resiliência e se tornasse o 18º brasileiro a pisar no cume da montanha mais alta do planeta. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. [trilha sonora] Roman Romancini: A minha paixão pelo montanhismo se desenvolveu de um modo muito sutil. Foi meio como um Bolero de Ravel, que começa suave e vai acelerando. O primeiro contato com esse universo foi num muro de escalada na Unicamp, onde eu estudei física. Ficar pendurado numa corda, segurando firme naquelas agarras, com o chão cada vez mais distante, era um misto de medo, fascínio, paúra e encanto. E ao mesmo tempo, meio esporte, meio dança, meio meditação. Eu comecei a escalar rochas de verdade na Pedra do Baú, em Campos de Jordão. Lá descobri que a montanha era um ambiente onde eu me sentia super à vontade. Aprendi a confiar na corda, nos equipamentos e principalmente nos parceiros. Superar essa barreira mental foi um passo fundamental pra minha evolução nesse esporte.  O montanhismo foi crescendo na minha vida, como um músculo que se hipertrofia. Quando eu me formei na faculdade, a trabalho, conheci diversas cordilheiras na América Latina e o alpinismo ganhou as dimensões da alta montanha. Em 1999, eu tive a primeira experiência de altitude, ao subir o Vulcão D’Água, na Guatemala. Eu vestia um suéter e passei um frio absurdo a 4 mil metros. Eu não tinha a menor ideia sobre roupa, alimentação e hidratação. Eu fui bem ingênuo e foi muito sofrido. Mas, ao mesmo tempo, sedutor. Eu queria mais, muito mais!  [trilha sonora] Foi então que eu fiz um curso de gelo na Bolívia e finalmente passei a barreira dos 6 mil pela primeira vez. Comecei a entender que o Roman aqui embaixo é um e o Roman lá em cima precisava ser outro. A aclimatação na altitude não é só biológica e nem fisiológica. Ela é também emocional, psicológica e comportamental. É preciso mudar o jeito de sentir, de pensar e de agir. Tem que aprender a ler todos os sensores e termômetros do corpo e da natureza. Os do corpo, que podem estar dizendo: segura a onda, não estou pronto ainda; tá faltando água; preciso comer; é hora de dormir. E os do ambiente: esse caminho tá perigoso, a tempestade vai chegar, não vamos conseguir voltar a tempo. O autoconhecimento é a principal habilidade na alta montanha.  [trilha sonora] À medida que eu aprendi novas coisas, os objetivos foram ganhando novas proporções. E foram ficando tão grandes quanto as do Himalaias. Em 2011, eu me sentia pronto para realizar aquele grande desejo de todo alpinista de altitude: subir o Santo Graal, o Monte Everest, a mais cobiçada das montanhas. Imagine, depois daquele cume de 8.848 metros de altitude, o próximo pedaço de terra é a Lua! Incrível! Eu acumulava a experiência de muitas expedições em altitude. Tinha feito montanhas de 2 mil, 3 mil, 4 mil, 5 mil, 6 mil, 7 mil… Era hora de encarar o maior dos 8 mil metros. [trilha sonora] Eu estava na minha melhor forma física. Corria uma maratona por semana. Para simular o peso da mochila e as condições de neve e vento na montanha, eu puxava pneus amarrados na cintura na areia da praia e nas subidas da Floresta da Tijuca, aqui no Rio de Janeiro. Duas ou três vezes por semana, eu saía da minha casa, no Jardim Botânico, e pedalava, em média, 3 horas até o Cristo Redentor, com ganho de elevação de mais ou menos 1.500 metros. E foi num desses treinos de bike que a minha vida mudou.  [trilha sonora] Quarenta dias antes da minha partida, eu fui atropelado por um carro que fez uma conversão irregular e me pegou de frente. Eu parei lá na naquela salinha de ressuscitação, com meu fêmur estilhaçado em incontáveis pedaços e os médicos discutindo se amputavam ou não a minha perna ou se me transferiram de hospital. Antes da cirurgia, o médico me disse que, com sorte, eu voltaria a andar sem mancar. Ao ouvir aquelas palavras, eu não quis aceitar que minha vida esportiva se encerrasse ali. Eu respondi pra ele a certeza da minha alma: “O senhor faz o seu trabalho direito e eu faço o meu. Eu vou voltar sim. Eu vou correr, vou escalar as minhas montanhas, vou jogar bola com os meus filhos”. Seria um exagero dizer que o acidente foi algo bom, não foi, mas eu encontrei naquela tragédia uma oportunidade de crescimento pessoal, emocional. Fiz dos meus sonhos a minha boia salva-vidas… [trilha sonora] Mas a primeira coisa era colocar os ossos quebrados no lugar com hastes de titânio e alguns pinos e sobreviver aos incontáveis percalços: trombose, febre, coágulos e uma série de outras complicações pós-operatórias. Durante essa tortuosa recuperação, ainda na UTI, eu me fiz a primeira pergunta fundamental: se eu morrer aqui, o que eu vou deixar? E eu me vi em várias dimensões: como pai, como filho, marido, profissional, amigo ... Era uma foto da realidade. E eu enxerguei um cara egocêntrico e individualista. Até então, o meu pensamento era eu, minha família, meus amigos, meus planos, minha carreira. Tudo na primeira pessoa, porque “nós” também é primeira pessoa. [trilha sonora] Passado o período de risco de vida, me fiz a segunda, e talvez mais importante pergunta: "Se eu tivesse morrido, o que eu gostaria de ter deixado?" Era um tapa na cara, realidade versus desejo. Ali no hospital, eu decidi mudar a minha vida, meu rumo profissional e criar as minhas 4 personas fundamentais: o Roman pai, o Roman profissional, o Roman esportivo/espiritual e o Roman cidadão, altruísta, mais voltado para o mundo do que pra si mesmo.  [trilha sonora] A recuperação começou por conseguir caminhar novamente. Foram 6 meses pra colocar o pé no chão. E 9 meses até andar. Eu ainda estava me preparando para retomar os treinos leves, quando um exame de rotina detectou um tumor maligno na tireoide. Inacreditável! Depois de tudo que eu passei, vem um câncer? Sério?!? Quando eu tive que dividir essa notícia com as principais fortalezas da minha vida, minha mulher e meus pais, o mundo ruiu. Eu não conseguia controlar o meu emocional. Para lidar com a situação, eu precisei virar um robô. Ou, como eu chamo, adotar o pragmatismo robótico. Simplesmente desligar as emoções. Seguir com os procedimentos, porque se eu sentisse alguma coisa eu não ia segurar a onda.  Por sorte, a doença foi resolvida em pouco tempo. A tireoide foi removida em uma operação. E eu não precisei de nem quimio, nem de radio, nem de iodoterapia. Assim, retornei ao trabalho com foco total, questionando como seria o meu futuro no montanhismo e no esporte e na minha vida em geral. O meu médico considerava uma vitória que eu caminhasse a maior parte dos dias sem mancar. Mas pra mim aquilo era simplesmente o básico do básico. Eu precisava do meu corpo para alcançar os lugares que a minha mente sonhava. Era hora de deixar a fase de paciente pra trás e voltar a ser o esportista, o montanhista de sempre. Três anos depois do acidente, zerado fisicamente e depois de muito treino eu retomei o tão sonhado projeto do Everest.  [trilha sonora] Em abril de 2014, eu finalmente cheguei àquele tão sonhado campo base. Eu não sou religioso, mas admito que a energia naquele lugar é diferente. Os Himalaias foram formados pelo encontro de placas tectônicas. Existe algo mais energético no nosso planeta que esse movimento? Como físico, eu posso dizer: é uma energia inimaginável para nós, pequenas formiguinhas humanas. O Everest também tem um lado místico. Os sherpas, grupo dominante daquela região, chamam a montanha de Sagarmatha ou de Chomolungma, deusa mãe do universo. Pra eles, o Everest é uma morada desta deusa. Minutos antes de começar o primeiro ciclo de aclimatação, uma avalanche histórica matou 16 sherpas e feriu 42 que estavam poucas horas à minha frente. Depois de muito impasse, o governo do Nepal fechou a montanha e todas as expedições foram canceladas. Quando eu voltei ao Brasil, pessoas vieram conversar comigo em tom de julgamento. “Você não percebe que essa é mais uma mensagem pra você?”. “Por que você não tenta fazer outras coisas?”. Ouvi várias frases desse tipo. Mas como eu sou muito bem resolvido com o meu propósito na montanha, o que chamam de burrice eu considero um exercício de resiliência. Voltar para casa com vida foi o meu maior sucesso naquele ano. Não conseguir subir a montanha é frustrante, mas faz parte. Não era a primeira vez que eu regressava sem chegar ao cume. E com certeza não seria a última. [trilha sonora] Conciliar a minha vida profissional, familiar e o meu lado montanhista é um desafio imenso. Uma expedição ao Everest exige que eu passe quase dois meses fora de casa. Por isso, entre 2014 e 2018, eu cuidei da minha rede de apoio. Eu foquei no Roman pai, no Roman filho, no Roman marido e no Roman profissional. E, em 2018, chegou a vez do Roman montanhista. Uma nova janela de oportunidade se abria. Eu voltei ao Everest.  [trilha sonora] Cheguei ao campo base com a experiência de ter feito no inverno quatro dos famosos sete cumes, ou seja, as montanhas mais altas de cada continente. Mas cada montanha é uma, cada expedição é uma. Na chegada ao acampamento base, já deu pra começar a sentir o efeito da altitude. Ali tem 50% do oxigênio do nível do mar. Enquanto eu esperava pra começar a subir, a minha cabeça mergulhava em pensamentos. Será que dessa vez eu ia conseguir? Controlar as emoções me fez acreditar que eu tinha feito absolutamente tudo que eu podia para dar certo até aquele momento. Foram mais de 20 anos construindo competências para eu estar ali naquela barraca a 5.350 metros de altitude, com mais de 3.500 metros ainda para avançar. Cirurgias, próteses, câncer, reabilitação. Tudo era página virada. Era hora de escrever um novo capítulo. [trilha sonora] Depois da fase de aclimatação, o ataque ao cume duraria 7 dias. Partimos pra essa etapa numa madrugada. Fomos direto ao Campo 2, onde chegamos sob uma tempestade terrível. Ficamos assustados com as condições climáticas, mas descansamos, comemos e bebemos, que é o que podíamos fazer. Procurei pensar no básico: respirar, escalar, respirar, escalar, clipar na corda, escalar, respirar e assim por diante. No Campo 3, a 7.200 metros, dormi já com máscara de oxigênio suplementar na crença que as previsões de tempo bom pro dia seguinte se confirmariam. Às 6h parti em direção ao Campo 4, seriam mais de 13 horas de escalada até chegar lá. Eu me aproximei da barraca meio cambaleante, exausto, completamente desidratado. Eu estava já naquela temida zona da morte, acima dos 8 mil metros de altitude. No Campo 4, temos apenas poucas horas para descansar, comer e se hidratar. E às 10 e meia da noite, parti para o ataque final ao cume. Eu sabia que seriam mais de 20 horas de escalada para chegar até o cume e voltar à segurança do Campo 4. Eu estava muito confiante. Mas a minha preocupação estava no trânsito inacreditável de alpinistas. Naquele dia, 140 pessoas fizeram o cume, todas presas na mesma corda, mas movendo-se sem coordenação, cada uma no seu ritmo. E o nosso ritmo - meu e do meu parceiro, Padawa, sherpa que me acompanha desde 2008 nas minhas expedições - era diferente.


Se ficássemos na fila, nosso oxigênio suplementar acabaria. Tive que tomar uma decisão. Olhei para inclinação do terreno e decidimos nos soltar da corda. Pensei: “É só não tropeçar”. Depois de uma noite muito fria, muito longa, um lindo dia clareou, sem uma nuvem sequer no céu. Por causa do cansaço e da falta de ar, a posição dominante era curvada.  Simplesmente não há oxigênio suficiente. E eu estava andando, olhando para os meus pés, quando o Padawa gritou, eufórico: “Roman, cume, Roman!”. Olhei para frente e a poucos metros estava um aglomerado de gente entre bandeiras coloridas e o céu azul. [trilha sonora] Chegar ao topo do Everest não foi tão romântico quanto eu havia sonhado. Tinha umas 15 pessoas num micro espaço de mais ou menos 4 metros quadrados. Eu experimentava um mix de emoções. Por um lado, a euforia de chegar lá, aquele sonho tão cobiçado. Por outro, o pragmatismo de saber que a metade mais perigosa estava por vir. Pois é. Cerca de 80% dos acidentes acontecem na descida, quando os alpinistas estão mais cansados, mais desatentos. E por mais paradoxal que pareça, o maior objetivo ao se escalar uma montanha quando se sai de casa, é justamente voltar para casa. O cume é apenas metade do caminho. Por isso, eu só comemorei de verdade quando o avião pousou aqui no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, e eu abracei a minha família. Nada mais podia dar errado. [trilha sonora] Nos Himalaias todos os números são colossais. A altitude, o tempo, o esforço e o preço material e não material. Os ganhos também. O Everest foi a coroação de um sonho, mas também a reafirmação dos meus desejos. Eu conheço várias pessoas que fizeram expedições enormes assim e disseram: “Isso não é mais pra mim”. Não é o meu caso. Isso sim é pra mim. [trilha sonora]


A expedição ao Everest foi um grande sucesso, em todos os aspectos. Eu voltei fisicamente destruído, como se tivesse ido para uma guerra, mas sem nenhuma intercorrência grave, como o congelamento severo ou uma situação de morte iminente. Se eu tivesse que escolher uma grande lição, eu falaria de repriorização. A montanha te descasca até chegar ao seu âmago, ao seu mais primitivo ser.


Isso é muito bacana, porque às vezes a gente vai se perdendo no meio da sociedade, no meio do dia a dia. No alto da montanha, trocar de telefone é irrelevante. Trocar de carro é irrelevante. Comprar aquele apartamento maior é irrelevante. O novo terno, o novo relógio, a nova bolsa… Tudo irrelevante. A 8 mil metros de altitude, com um terço do ar e a 40 graus negativos queimando a sua narina toda vez que entra no seu corpo, você lembra o que realmente importa. Ar, água, comida, abrigo e amor. Nada mais. 


[trilha sonora]


Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.


[trilha sonora]

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Desmistificando conceitos: o que é a medicina da floresta?

O conceito que abarca diferentes abordagens, tem ganhado força na atualidade e busca por inclusão das práticas corretas e do reconhecimento dos povos originários

24 de Setembro de 2024


A ciência não está escrita em pedra e a sua renovação é parte cotidiana de sua prática. É até mesmo esperado que, com o passar dos anos e acúmulo de novos conhecimentos, suas práticas sejam revistas. Até porque, não se trata de algo exato e imutável: a ciência é viva e dinâmica, portanto, se flexibiliza e se adapta. 

É o caso da covid-19, exemplo mais recente que não nos deixa esquecer como verdades absolutas adotadas ainda no início da pandemia logo caíram por terra conforme os cientistas foram se tornando mais familiares a esse vírus que chegou de repente e assolou todo o planeta de maneira devastadora. 

Há ainda um outro aspecto muito importante sobre a ciência que a covid nos ensinou: a força da natureza. O mistério que mora no meio ambiente ao nosso redor e que nos condena na mesma medida que nos salva desde que o mundo é mundo - e o tanto de respeito e responsabilidade que a ele devemos. 

A medicina da floresta, tema que falaremos mais a seguir, é uma síntese sobre tudo isso: as ondas científicas que, de tempos em tempos, são revisitadas, a força da natureza, a humildade que devemos ter diante de saberes que transcendem o nosso tempo e muito mais! 

O que é a medicina da floresta?


A medicina da floresta é um termo usado para se referir ao conjunto de práticas terapêuticas, saberes e conhecimentos tradicionais desenvolvidos por povos indígenas, comunidades ribeirinhas e outras populações que vivem em regiões de floresta, especialmente na Amazônia. 

É ainda um conjunto de saberes carregados através dos séculos, principalmente pela oralidade, tema que falamos por aqui recentemente no episódio de Daniel Munduruku, no Podcast Plenae. Essa forma de medicina se baseia no uso de plantas medicinais, ervas, cascas de árvores e outros recursos naturais encontrados na floresta, que são utilizados para tratar diversas doenças e promover o bem-estar.

Elas se concentram, sobretudo, nas abordagens com rapé, ayahuasca, sananga e kambô, medicinas utilizadas há mais de 5 mil anos, segundo esse estudo de Karlene Bianca Oliveira, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mas certamente há tantos outros saberes espalhados por aí e apenas menos catalogados. 

“Pode-se dizer que hoje a medicina mais falada é a ayahuasca, mas para mim não existe medicina melhor ou pior, cada uma vai trabalhar uma necessidade diferente. A cerimônia da ayahuasca é muito feita aqui na Casa Xamânica, mas a gente também abre para a medicina da sananga ou do rapé. Essa última é feita de tabaco e casca de árvore, aplicada nas nossas narinas, sempre dos dois lados para que não tenha nenhum desequilíbrio e seu objetivo é trazer mais foco, concentração, limpeza dos maus pensamentos - ajuda bastante se a pessoa tem depressão, por exemplo”, conta Lucas Reis Bergamo, fundador da Casa Xamânica.

Seu primeiro contato com a medicina da floresta, como ele conta, foi aos 26 anos. Hoje, com 33, ele relembra que a intensidade das primeiras não foi imediata. Foi preciso a terceira consagração da ayahuasca para que ele se sentisse realmente limpo e “na força”, como é chamado o durante o uso do chá. De lá para cá, ele estudou, viajou, fez imersões profundas com povos indígenas, trabalhou em outros locais guiando cerimônias até que tivesse o seu próprio espaço para se dedicar ainda mais a essa área. 

“Cada pessoa trilha o seu caminho. No meu caso, a primeira coisa que eu fiz foi me aproximar dos povos indígenas, que são os detentores da cultura e das rezas que guiam toda essa espiritualidade. É claro que existem outras religiões que trabalham outras vertentes. Mas eu me apaixonei pelos povos indígenas e fui buscar conhecimento na raiz, na fonte”, relembra. 

A partir disso, ele trouxe esses ensinamentos para o contexto urbano. “Ali eu pude entender toda a parte espiritual e cultural dessas medicinas para que, quando eu trouxesse para o contexto urbano, eu tivesse menos prejuízos possíveis enquanto eu estivesse guiando uma cerimônia. Eu sempre tive muita responsabilidade não só espiritual, mas com a parte física mesmo”, diz. 

Segundo Lucas, não há um tempo específico de estudo ou uma formação para isso. O norte é se sentir preparado para estar fazendo esse trabalho pelo outro e mais: para aplicar todos os ensinamentos colhidos durante as cerimônias no seu dia a dia. “Você precisa não só se curar, mas praticar no dia a dia”, diz. 

E isso não quer dizer consagrar medicinas a todo tempo, até porque, é preciso cautela já que muitas dessas substâncias continuam agindo em nosso organismo por um tempo e, a depender das suas sensações durante o uso, é preciso descansar. “Tem pessoas que consagram uma única vez na vida e não sentem necessidade de fazer nunca mais”, explica ele. 

Os aspectos da medicina da floresta


Dentre os principais aspectos da medicina da floresta, destacam-se:

  • Plantas medicinais: espécies de plantas encontradas na floresta e que possuem propriedades curativas, sendo utilizadas de diversas formas, como em chás, unguentos, banhos ou inalações. A ayahuasca, prática que te contamos por aqui em um relato, é uma planta sagrada usada em rituais de cura por algumas comunidades indígenas da Amazônia.

  • Saberes tradicionais: é todo o conhecimento sobre as plantas e seus usos medicinais, transmitido oralmente de geração em geração entre curandeiros, xamãs e outros líderes espirituais. Eles possuem um papel central na manutenção e transmissão desse tanto de informação que poderia se perder pelo caminho, mas é preservada por um grupo específico e especial de pessoas..

  • Espiritualidade: a medicina da floresta muitas vezes está profundamente ligada a crenças espirituais e cosmologias indígenas, por exemplo. A cura é vista como um processo holístico, envolvendo o equilíbrio do corpo, da mente e do espírito, além da relação com a natureza e os seres da floresta.

  • Sustentabilidade: a prática dessa medicina está alinhada sempre com noções básicas de sustentabilidade, respeitando e preservando o ecossistema local por meio de uma colheita cuidadosa das plantas, por exemplo, garantindo sua regeneração e continuidade.

A medicina da floresta atual


Lembra que mencionamos o caráter cíclico que as práticas científicas podem ter ao longo dos séculos? A medicina da floresta não foge a essa regra e, apesar de ser milenar, ela tem atraído novo interesse mundial nos últimos tempos, se tornando “moda” em alguns círculos de pessoas.

Isso se dá especialmente em função das propriedades medicinais de plantas amazônicas, que agora são mais facilmente encontradas, e o potencial que muitas delas têm para a descoberta de novos tratamentos na medicina ocidental - também mais fácil de ser explorado. Até falamos por aqui, em um Tema da Vez, sobre a nova guinada psicodélica que a academia científica tem tomado - e a natureza é parte indissociável desse processo.

O movimento ganhou tanto corpo que há um Centro Medicina da Floresta (CMF), uma organização não-governamental (ONG) que atua na Floresta Nacional do Purus, na Amazônia Brasileira, e que foi criada em 1989 por um grupo de mulheres, crianças e jovens.

Seu objetivo é resgatar o conhecimento tradicional das plantas da região CMF e manter viva a sabedoria popular das comunidades próximas à floresta por meio de medicamentos fitoterápicos,
assuntos que falamos por aqui e também neste outro artigo. A atividade principal dessa entidade é o extrativismo de espécies medicinais, que posteriormente se tornam os Florais da Amazônia. 

Mas há também o lado negativo da coisa toda. “Hoje, infelizmente, muitas pessoas se apropriam de culturas, de etnias, e ficam usando nomes indígenas, sendo que não são, sem realmente ter a capacidade ou o conhecimento para tudo aquilo que ele está carregando. A partir do momento que você faz essa escolha de guiar o outro, não é mais por você. Tem que ter muita responsabilidade, é um trabalho árduo que envolve um preparo de dias antes. Saber como que essa medicina vai chegar até nós, quem foi que fez, como ela está, fazer uma boa ficha de anamnese para entender se aquela pessoa está fisicamente apta para isso”, conta Lucas.

Ele ainda ressalta que, mesmo com tantas informações disponíveis e aumento da procura, o preconceito e a desinformação continuam circulando entre nós quando o assunto é a medicina da floresta. Mas que, apesar disso, a procura só tende a crescer, em sua opinião.

“A tecnologia tem o seu lado negativo, mas vem nos auxiliando muito também. Ela nos ajuda a divulgar e passar uma mensagem, não dizendo para as pessoas que elas devem consagrar, mas passando todo esse conhecimento, toda essa informação. Outro benefício é para os povos indígenas, a visibilidade que eles estão tendo, conseguindo viajar mundo afora para levar sua cultura e trazer o seu ganha pão, conseguir estruturar suas terras para ter uma água de um poço artesiano na aldeia, para ter internet, comida, barco para todos”, pontua.

Por fim, se você está procurando iniciar na medicina da floresta, independente da sua finalidade, busque conhecimento. Isso vale para internet, claro, mas procure conversar com quem já teve contato com alguma das abordagens ou ir até uma casa onde essas cerimônias são realizadas, para entender um pouco mais sobre como será o processo. 

Eu acho que o caminho para todas as medicinas é o caminho do coração, do que a pessoa está sentindo ali. Mas para qualquer tipo de medicina, eu acho que deve ter sim algumas recomendações. Converse com participantes, entenda qual medicina está consagrando e da onde que ela veio, quem preparou isso é muito importante também, porque hoje as pessoas estão fazendo medicina de qualquer jeito e estão colocando coisas dentro da para dar mais efeito que não são a verdadeira matéria prima”, conclui Lucas. 

Não se esqueça ainda de falar com o seu médico se for idoso, gestante ou tiver algum problema prévio, seja ele cardíaco, mental ou de outra ordem. Tenha sempre cautela, não só com as medicinas da floresta, mas com todas as novas abordagens que se propor a conhecer. Não se canse nunca de buscar mais sabedoria e autoconhecimento!

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