Para Inspirar

Rodrigo Hübner Mendes em "Resiliência do propósito, plasticidade da ação"

Como um episódio marcante pode mudar os rumos de sua vida - e de outros tantos? Rodrigo Hübner Mendes explica, no Podcast Plenae

11 de Outubro de 2020


Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

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Rodrigo Hübner Mendes: Quando o pessoal do Plenae me convidou pra gravar esse podcast, achei interessante a provocação pra que eu falasse sobre minha relação com meu corpo, com a minha saúde, com meu movimento. Especialmente pra alguém que, aos 18 anos, sentiu na pele o que parecia ser uma eterna perda da mobilidade.  [trilha sonora]

Geyze Diniz: Conhecer o Rodrigo é entender o significado da palavra inspiração. Uma assalto, um tiro, uma mudança drástica do percurso. O que seria para muita gente motivo para deprimir e se fechar, foi o motivo com que ele se abrisse para o mundo e criasse caminhos para inclusão de tanta gente que precisa. No final do episódio, você ouvirá reflexões do doutor Victor Stirnimann para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Aproveite este momento, ouça e reconecte-se. [trilha sonora]

Rodrigo Hübner Mendes: Durante toda minha infância fui apaixonado por futebol. Comecei jogando bola no quintal de casa e, conforme fui ganhando confiança, pedi pro meu pai me inscrever no campeonato do Clube Pinheiros. Tive a sorte de me destacar logo no primeiro ano. Fui convocado pra a seleção do clube, o que era o máximo pra um garoto naquela idade. Já com 13 anos, levei uma pancada no joelho, o que me afastou completamente do esporte por bastante tempo. Acabei precisando passar por uma cirurgia pra retirada do menisco, que resolveu totalmente o meu problema. Voltei a jogar bola sem nenhuma dor. E, ao mesmo tempo, defini qual seria meu plano de vida. Fiquei tão fascinado com o poder do médico de devolver bem-estar pras pessoas, que decidi que eu seria cirurgião de joelhos de atletas.

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Na época, meu médico tinha fortemente recomendado que eu balanceasse o futebol com algum esporte que não gerasse impacto no joelho e que me desse massa muscular. Lembrei que um primo mais velho tinha experimentado remo recentemente e tinha adorado. E aí fui eu pra raia da USP, onde ficam as instalações de todos os clubes de remo de São Paulo. Logo de cara criei uma enorme curiosidade e motivação por aquele esporte que, no meu imaginário, formava atletas indestrutíveis, incansáveis. Quer dizer, um universo extremamente sedutor para um adolescente em busca de novidades. Comecei remando no Paulistano, que é um clube de elite e tinha a melhor infraestrutura na época. Nosso treinador se chamava Hércules. Acho que nenhum nome pode ser mais apropriado pra descrever um personagem que era um mito na raia. O cara era um armário, alto, muito forte, barba preta. Falava pouco, nunca sorria e fuzilava com os olhos quando alguém se atrevia a fazer um comentário mais descontraído durante o treinamento. Eu achava aquilo tudo muito divertido. Me sentia meio que num filme. Mas levava super a sério. Era bem "caxias" com horários, esforço, etc.

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Saltando no tempo, na época em que eu estava no cursinho pré-vestibular, eu passei por um assalto onde levei um tiro. E isso gerou a imobilidade abaixo dos ombros, chamada de tetraplegia. 

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Fui obrigado a abandonar os estudos e canalizar todo o meu tempo pra diversos tipos de fisioterapia. Tive acesso aos melhores médicos e apoio incondicional da minha família e dos meus amigos. Em nenhum momento me faltou ajuda. Me lembro que, toda noite, a sala de espera do hospital ficava abarrotada de gente querendo me ver, querendo ajudar de alguma forma. Além disso, minha história com esporte foi decisiva para que eu conseguisse sobreviver, especialmente pelo remo que trabalha muito resistência e saber não entregar os pontos. 

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Teve uma passagem muito marcante com meu pai. No dia do assalto, logo que ele chegou no hospital e me viu na maca, num limite entre vida e morte, muito fragilizado, ele segurou no meu braço e disse: filho, fica tranquilo, faz a sua parte, a gente vai fazer a nossa e a gente vai vencer isso tudo. Isso passou a ser o meu lema diário que me influencia até hoje.

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Quando eu comecei a frequentar clínicas de reabilitação, percebi que eu era uma exceção. A maioria das pessoas que passam por acidentes ou nascem com alguma deficiência, enfrentam também pobreza, miséria. Interessante que outro dia eu estava lendo um livro sobre o navegador Ernest Shackleton. Ele era um aventureiro que, em 1914, organizou uma expedição com o objetivo de realizar a primeira travessia do continente antártico com trenós. E aí o negócio deu errado. Antes de chegar no ponto de desembarque, o mar congelou e eles ficaram presos por 9 meses no navio, até que a pressão do gelo arrebentou com a estrutura do barco e eles tiveram que passar um tempo enorme vivendo em cima de placas de gelo, em condições extremas. Temperaturas muito baixas, ventania, muita umidade. Em várias passagens desse livro, o Shackleton fala sobre a relatividade das adversidades. Dizia, por exemplo, que quando a temperatura subia de -25º para -5º, comparativamente eles se sentiam super confortáveis e felizes. Esse livro fez eu voltar no tempo, porque eu me identifiquei muito com essa sensação. Logo na primeira semana de hospital eu tive esse insight de que estava na minha mão dimensionar qual seria o tamanho do meu problema. Em relação a quem não tinha nenhum suporte, me vi ali como uma pessoa extremamente privilegiada. E aí, mais pra frente, o desejo de retribuir tanta coisa boa que eu tinha recebido, combinado com o sentimento de indignação por ver que muitas famílias não tinham como pagar as despesas do tratamento dos seus filhos, com casos muito complicados, resultou na criação do Instituto Rodrigo Mendes.   [trilha sonora]

E o que que o Instituto faz? A gente trabalha pra que nenhuma criança ou adolescente fique de fora da escola por causa de uma deficiência. Pra isso, a gente vem investindo em 3 pilares: identificando o que existe de mais avançado no mundo, oferecendo referências práticas pro professor que tá lá na ponta e se sente inseguro e promovendo formação, cursos pra professores em todo Brasil. 

Nos últimos anos a gente produziu documentários sobre casos de sucesso no Brasil, nos Estados Unidos, na França, na Dinamarca e na Argentina. E como resultado dessa nossa exposição internacional, a gente foi contratado pelo Governo de Angola para um projeto de consultoria para a criação de uma Política Nacional de Educação Inclusiva lá. É a nossa primeira intervenção na África e vai beneficiar milhares de crianças e adolescentes. Olhando pro Brasil, a gente conseguiu impactar mais de 100 mil educadores dos 26 estados brasileiros. Essa é uma marca que a gente atingiu esse ano. Estamos super feliz, é o nosso presente de 25 anos. 

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Voltando à provocação do Plenae, será que a minha relação com meu corpo mudou nesse tempo todo? Será que quando eu era atleta o meu corpo exercia maior influência sobre a minha identidade? Ou, ainda, será que a minha nova condição me levou a ser mais desprendido do meu corpo?

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Para começar, eu acho que a separação corpo, mente e espírito tem uma função meramente didática. Serve para a gente tratar das diferentes dimensões que nos compõem de uma forma mais organizada. Mas, objetivamente, a nossa existência se dá pelo corpo. É por meio dele que somos percebidos, que a gente deixa nossa marca, mesmo que a gente continue a existir na memória dos outros depois da morte. Isso independe da nossa crença pessoal sobre questões metafísicas e religiosas. Quer dizer, eu continuo intrinsecamente ligado ao meu corpo. E o fato do meu corpo ter mudado não significa que minha essência tenha mudado. Eu sinto que ela foi preservada.

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Há alguns anos fui convidado pra dar uma palestra em Davos. Me chamaram para falar sobre resiliência. Como muita gente sabe, resiliência é um conceito da física que diz que, na natureza, alguns materiais têm a capacidade de retornar ao seu estado original após sofrerem uma deformação ou um impacto. Os americanos gostam de chamar isso de "bouncing back", que é o movimento que uma bola de borracha desempenha quando é arremessada contra uma superfície rígida. A bola se deforma e depois recupera a sua configuração. A plateia em Davos tinha príncipes, princesas e grandes autoridades. Quando subi no palco, o entrevistador me perguntou: Rodrigo, sabendo que a história da humanidade é marcada por crises cíclicas, você acha que é possível aplicar o conceito de resiliência para superação dessas crises? Eu pessoalmente acredito que, diante de uma mudança imposta, indesejada, a tendência humana é querer voltar à situação anterior. Senti isso na pele logo depois do meu acidente. Passei 3 anos fazendo 8 horas por dia de fisioterapia pra voltar a ser quem eu era, ou seja, um jovem fisicamente independente. Hoje eu percebo que a resiliência é uma capacidade fundamental para nossa essência. Seja qual for o impacto, a ruptura que surgir na nossa frente, a gente precisa ser capaz de preservar, de proteger nosso objetivo maior. Agora, quando a gente pensa na nossa ação, na nossa vida prática, eu prefiro usar um conceito que é o oposto da resiliência, que é a plasticidade. Plasticidade é a capacidade de um material se moldar, se transformar e se desprender da forma anterior. Resumindo, eu propus que as lideranças lá presentes buscassem combinar resiliência do propósito com plasticidade da ação. Que deixassem para trás o "bouncing back" e começassem a pensar em "bouncing forward". E esse negócio pegou. A expressão "boucing forward" saiu na frase final do relatório do Fórum Econômico Mundial. 

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Voltando para a questão da mudança do meu corpo, de certa forma, acho que é isso que eu venho fazendo nesses anos todos. Me reinventado, mas blindando a minha essência. Os caminhos pra eu atingir meus objetivos vão se modificando com o tempo, mas o meu norte segue sendo o mesmo. Eu gosto muito do poema vitoriano que diz que “somos mestres dos nossos destinos, somos capitães das nossas almas”. Apesar da enorme incerteza que está sempre ao nosso redor, da impossibilidade da gente controlar as coisas, daquilo que os budistas chamam de impermanência, me ajuda muito pensar que a nossa intenção, o nosso objetivo maior está sob nosso controle, não importa quantos tiros, quantos trancos a gente leve.

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Os momentos mais difíceis da minha vida foram, de longe, os primeiros dias no hospital. Eu tinha muita dificuldade pra respirar e precisava enfrentar uma maratona de procedimentos que eu nem sabia que existiam. Toda madrugada, tinha a hora em que todo mundo fazia uma pausa pra descansar e eu ficava, ali, acordado, meio que numa sombra, como que na beira de um precipício, me segurando como eu podia pra não despencar. Nessas horas, eu recorria aos melhores momentos do meu passado, que apareciam como um cinema projetado no céu. Eram sempre momentos marcados por leveza e afeto. E aquilo me reanimava. Eu me sentia com uma força sem fim pra, no dia seguinte, encarar de novo aquele maremoto com meu barquinho a remo. 

Me dá muito prazer saber que eu, minha equipe, meus conselheiros, nossos parceiros, quer dizer uma legião de pessoas, trabalham pra melhorar a educação no país, pra que todo mundo esteja no jogo e tenha a chance de marcar um gol ao invés de passar a vida toda no banco de reservas, ou pior, escondido no vestiário. Uma das estratégias que eu adoto pra manter o meu foco no meu propósito é me lembrar de uma noite, quando eu estava no primeiro ano de faculdade, em que eu perdi o sono e resolvi ligar a TV. E estava sendo transmitida a cobertura de um encontro mundial de grandes cientistas, filósofos e líderes religiosos. O objetivo era discutir o futuro do planeta. Os argumentos eram hiper sofisticados até que, num dado momento, a palavra foi passada pro Dalai Lama. E aí, com muita simplicidade, ele falou que é uma ilusão discutir sustentabilidade sem que a gente primeiro reconheça que todos os seres humanos são interdependentes. Eu gosto muito dessa visão de que, se o nosso vizinho tá passando por um sofrimento, de alguma forma a gente também vai ser afetado por esse sofrimento, não importa a altura dos muros que separam as nossas casas. Eu realmente acredito que a gente precisa ser capaz de devolver tanta coisa boa que a vida oferece pra gente todos os dias e trabalhar duro para que as coisas melhorem. Melhorem não só pra gente, mas pra cada vizinho desse bairro planetário chamado Terra. Acho que no fundo eu continuo seguindo o pedido do meu pai, buscando fazer a minha parte. [trilha sonora]

Victor Stirnimann: Escutar o Rodrigo, prestar atenção na forma como ele conta sua trajetória neste mundo, já é uma experiência que muda nossa energia e nos acende. A sua intensidade nos desperta para tudo que a vida pode ser, a nossa vida. Rodrigo é um daqueles mestres que desenvolveram a qualidade de presença. Presença e consciência de quem sabe e nunca esquece que estamos aqui por um tempo, por um triz, e que este milagre bem curto, precisa ser aproveitado, saboreado, celebrado como fogos de artifício em uma noite de verão. Naquela fala aparentemente simples do pai, "faça sua parte e faremos a nossa", exige um dos segredos mais importantes para quem tem a profundidade de escutar. Cada um de nós, sem exceção, é um projeto especial do cosmos, da inteligência universal que se descobre diferente em cada olhar, em cada destino. Fazer a nossa parte é entender que cada vida, sem exceção, encontra limites. Limites que estão nela e não em todas as outras e que são estes limites que a fazem única, exclusiva, nunca repetida em todos os mundos e todos os tempos. Hoje em dia, falamos tanto de transcender os limites, quase esquecemos de que precisamos abraçá-los primeiro, para depois lembrar de nossa verdadeira raiz que é o infinito. Na tradição budista, a escolha de Rodrigo representa o caminho do Bodhisattva, aquele que poderia se libertar primeiro, mas escolhe permanecer enquanto foi possível, ajudando na libertação de todos os outros. Nesta escolha, o capitão de nossa alma nos ajuda a superar a última ilusão, a de que existe um destino nosso que não seja também o de todos os outros.
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Geyze Diniz: As nossas histórias não acabam por aqui. Acompanhe semanalmente nossos episódios e confira nossos conteúdos em plenae.com e no perfil @portalplenae no Instagram.  [trilha sonora]

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Para Inspirar

Marília Costa em “Se um dia meu corpo carregou uma doença, hoje ele jorra vida”

Inspire-se com o episódio de Corpo da décima oitava temporada do Podcast Plenae - Histórias para Refletir!

1 de Dezembro de 2024



Leia a transcrição completa do episódio abaixo: 

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Marília Costa: Quando eu amamentei meu filho, o meu peito se tornou um canal de conexão com a vida, não mais com a morte. Para mim, amamentar foi até mais poderoso do que gestar e parir.  

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Geyze Diniz: Foi durante um ensaio que a bailarina Marília Costa sentiu que havia algo estranho com seu corpo. Aos 28 anos foi diagnosticada com câncer de mama e iniciou o tratamento. Anos mais tarde, após ter dois abortos, nasceu seu filho Tainã. E seu peito que antes representava doença, passou a significar vida. Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. 

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Marília Costa: Eu fui diagnosticada com câncer de mama quando eu tinha 28 anos. Eu era bailarina de uma companhia de dança contemporânea. Estava no auge da carreira. Percebi que tinha alguma coisa estranha no meu seio direito durante um ensaio. Em uma das coreografias, eu fazia um mergulho no chão, tipo um peixinho. E foi nesse movimento que eu senti um desconforto. Eu achei aquilo estranho e depois comentei com uma amiga.

Ela apalpou o meu peito e falou: “Olha, esse aí eu acho que não é nada. Mas na sua mama esquerda tem um nódulo muito rígid
o. Acho que você tem que procurar um médico”.
 Eu fiz o exame de ultrassom e, quando a médica viu o laudo, perguntou se tinha histórico de câncer na minha família. Até então, eu confesso que não estava preocupada. Eu era jovem, me cuidava e não havia caso na família. Então, na minha cabeça, não fazia sentido eu ter a doença. Mas a pergunta da médica mostrou que eu podia estar errada. 

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Fiz uma bateria de exames e, quando o resultado da biópsia saiu, eu fui direto para o consultório da mastologista. No caminho, eu pedi para minha amiga ler o laudo do exame, enquanto eu dirigia. Ela leu: “Carcinoma ductal invasivo”. Eu não entendi aquelas palavras, então eu falei pra ela: “Ah, beleza não é câncer não, né?”. E ela respondeu: “Não, não, não é. Relaxa”. Mas ela sabia que era.  

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A gente chegou no consultório e eu lembro que a médica ficou com lágrimas nos olhos quando viu o laudo. Ela disse: “Olha, dar essa notícia pra uma mulher tão jovem é difícil, mas eu preciso te dizer: você está com câncer.” A minha mãe e minha amiga estavam ao meu lado e colocaram a mão em meus ombros.

Eu não sei explicar, mas eu não fiquei tão abalada na hora. Eu falei: “
 bom. O que que eu tenho que fazer agora?”. 
Eu tive uma força tão grande, que até eu fiquei surpresa, porque não era o meu padrão. Eu era uma pessoa frágil. Eu sou muito magra, a imunidade sempre baixa. E emocionalmente também eu me sentia frágil. Mas naquele momento essa fragilidade desapareceu. E nunca mais voltou. 

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Dois meses depois da consulta, eu operei. 

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Eu entrei no centro cirúrgico sem saber direito o que ia acontecer, porque durante a cirurgia os médicos iriam investigar um segundo nódulo, que poderia ser maligno. Quando eu acordei, soube que tinham removido a parte central da mama esquerda, incluindo o mamilo. Não vou dizer que foi uma operação tranquila, mas foi menos invasiva do que poderia ter sido.  

 

Pouco tempo depois, eu comecei a quimioterapia. Foram quatro sessões da quimio mais forte, aquela que faz o cabelo cair e que efeitos colaterais fortesDepois mais 12 de uma quimio mais branda. E, para terminar, eu fiz 30 sessões diárias de radioterapia. No total, foram 10 meses vivendo uma montanha russa física e emocional. Quando eu estava bem, eu estava muito bem. É curioso, mas talvez nesse período eu tenha vivido os dias mais felizes da minha vida. A consciência da finitude me mostrava que aqueles momentos eram muito preciosos.  

Então, eu aproveitava para ir ao parque, assistir espetáculos, viajar. Eu cheguei a pegar um avião de São Paulo à Vitória, no Espírito Santo, para visitar uma grande amiga. Era um tipo de aventura que eu nunca tinha feito antes. Nos dias bons, eu me sentia radiante. Nem a careca era um peso para mim. Eu já tinha sentido vontade de raspar a cabeça antes da doença, então eu tirei de letra. Às vezes eu colocava um lenço, mas só pra fazer um estilo ou pra me proteger do frio ou do sol.  

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Só que nem sempre eu estava bem. Quando eu acordava mal fisicamente, eu entendia que aquele mal-estar também ia me deixar pra baixo emocionalmente. Nesses dias, eu me permitia sentir tristeza, angústia, medo. Como eu tenho uma consciência corporal muito presente, eu sentia todo o meu corpo recebendo e digerindo aquelas medicações.

A quimioterapia mata não só as células doentes, as saudáveis também.
 Eu entendia que aquela tristeza era um dos efeitos colaterais. Eu tinha saído da minha melhor forma física para um corpo com 10 quilos a maisForam intensas as transformações, externas e internas. Nada mais era como antes.

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Eu não tinha medo de morrer. Eu tinha medo de não conseguir dançar mais. Durante o tratamento, eu até tentei voltar pra companhia, mas foi impossível. Eu fui em um ensaio, e com 30 minutos de aquecimento já me dei conta que eu não tinha condições físicas. Quando o tratamento terminou, eu fiquei em uma menopausa induzida e iniciei o tratamento preventivo. Por sete anos eu tomei o comprimido diariamente. Com ele, eu não podia engravidar de jeito nenhum, porque o remédio pode causar aborto espontâneo, defeito congênito e até morte fetal. 

Eu parei esse medicamento aos 36 anos. A essa altura, eu estava em um relacionamento e decidimos perguntar ao meu médico se eu podia engravidar. Ele disse que sim, mas pediu uma série de exames pra gente ter certeza que não havia nenhum foco da doença. Foi neste período de um ano, que eu fui concebendo a ideia de ser mãe. Até então, a maternidade não era um sonho pra mim. Eu sabia que seria difícil engravidar, por tudo que meu organismo tinha passado. Mas eu fui entendendo que o meu desejo era mais maternar não necessariamente gestar.  
 

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Quando o médico me liberou pra começar as tentativas, eu engravidei no primeiro mês! Foi uma surpresa imensa, era um indício que meu organismo estava saudável e pronto para gerar um bebê, parecia inacreditável. E só então eu senti no meu coração o desejo forte de gestar. Pela primeira vez, eu me imaginei com um bebê nos braços. 

O que eu não imaginava era que o sonho seria interrompido. Na oitava semana, eu soube que a minha gestação era anembrionária, quando um óvulo fertilizado se implanta no útero, mas o embrião não se desenvolve. Ainda teve mais: os exames de imagem mostravam a possibilidade de uma gestação molar, quando o saco gestacional se transforma em um tumor maligno.  

Encarar o risco de um novo câncer era muito assustador. Mas felizmente uma biópsia mostrou que não era um tumor. Eu podia respirar aliviada quanto a isso. Mas, eu tinha perdido o meu bebê e eu sentia dentro de mim um vazio enorme. Eu vivi um luto solitário, para os outros o meu bebê não existiu.  

Apesar de toda a tristeza, eu procurava me agarrar na ideia de engravidar novamente. Aquelas semanas de gravidez me encorajaram a assumir que eu queria e poderia gestar. Segundo os médicos, a gestação anembrionária é muito comum. Não tinha nada a ver com o tratamento. Então, eu decidi continuar tentando.  

[trilha sonora] 

Seis meses depois, eu engravidei de novo. E de novo, eu perdi. Os médicos nem consideram que foi um aborto, mas sim uma gravidez química. É uma condição em que o óvulo é fecundado, mas o embrião não se implanta no útero. Eu estive grávida durante uma semana. Foi tão pouco tempo, que eu nem cheguei a criar vínculo com o bebê. Dessa vez, o meu sentimento não era de tristeza, era de raiva.

Eu 
estava fazendo tudo que estava ao meu alcance. Acompanhamento nutricional pra melhorar a qualidade dos óvulosmeditação, corridaioga... E o que estava acontecendo? Era a vida, mais uma vez, me mostrando que eu não tinha controle de nada.
 No mesmo dia em que eu recebi a notícia desse aborto espontâneo, eu ia me apresentar como bailarina. Eu voltei a dançar depois que o tratamento de câncer acabou. Mas agora eu dançava um espetáculo solo chamado Inquieta Razão em que eu narrava de forma poética a minha história com a doença.

Eu 
estava a caminho do teatro quando eu decidi que aquela seria a última apresentação do solo. Eu não queria mais me envolver emocionalmente e fisicamente com aquela memória. 
E eu acho que essa foi uma das minhas melhores performances, expressei tudo que estava sentindo, raiva, frustração, medo, angústia e também concebi em cena que o câncer era um capítulo encerrado em minha vida.  

Pouco tempo depois, eu tive uma consulta com um médico especialista em fertilidadeEle analisou os exames, meu e do meu marido, disse que não tínhamos os melhores resultados. Se a gente não engravidasse em três meses, ele recomendava uma fertilização in vitro. Só que pra mim esse procedimento não fazia sentido. Já tínhamos decidido, se eu não engravidasse, partiríamos pra adoção. 

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Naquela mesma noite, eu fiz um treino de corrida e senti muito cansaço. Não era só um cansaço físico. Era um cansaço emocional profundo. E aí eu lembrei que eu só estava correndo pra preparar o meu organismo para gestar. Nas últimas três voltas do percurso, eu corri mentalizando: “Eu estou gestando o meu bebê. Eu estou gestando meu bebê. Eu estou gestando meu bebê”. Era como se cada passo fosse um convite à vida que eu tanto desejava. 

No dia seguinte, eu achei que a minha menstruação estava atrasada e comprei um teste de farmácia. Deu positivo. Eu já tinha feito um monte desses testes. Mas daquela vez eu sentia que era pra valer. Oito semanas depois, um ultrassom mostrou o coraçãozinho de um bebê batendo na minha barriga. E foi só aí que eu choreide alívio e alegria. Meu bebê pulsava a 153 batimentos por minuto. Era um carnaval dentro e fora de mim. 

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Eu compartilhei essa notícia com meus amigos 
e familiareno mesmo dia em que lancei o livro Inquieta Razão: relatos poéticos que entrelaçam a potência da vida a vulnerabilidade de um diagnóstico de câncer de mama’. Meu marido, que é músico, tocou no lançamento, e eu dancei, é claro. Dancei celebrando o fim de um capítulo sombrio e a abertura de outro, cheio de luz.
 

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A minha gravidez foi bem tranquila, exceto por um pensamento que me atormentava: será que eu ia conseguir amamentar? Uma das minhas mamas era saudável, já a outra tinha sequelas do tratamento, eu não tinha o mamilo. Sabia que não seria possível amamentar. O mastologista jurava que o meu organismo ia entender essa dinâmica e eu teria leite em uma única mama. Mas eu não tinha tanta certeza assim. Eu pesquisei na internet e não achei nenhuma história igual à minha. Só tinha um jeito de saber: vivendo essa experiência.  

No dia 03 de maio de 2023, o 
Tainã nasceu. Depois do parto, na sala de repouso, quando colocaram ele nos meus braços, eu sentia uma mistura de euforia, alívio e apreensão. Mas o êxtase mesmo foi quando ele agarrou a minha mama direita e mamou por duas horas sem parar. Aquele foi um dos momentos mais felizes da minha experiência como mãe. 
Aos poucos, eu fui tomando consciência que amamentar era não só um ato de conexão íntima com meu filho. Era, acima de tudo, uma conexão comigo mesma. Finalmente, eu podia ressignificar a minha relação com as mamas.

Porque, até então, os meus seios 
estavam relacionados com doença, com escassez, com exames, com cicatriz, com dor. Mesmo com muita terapia, eu ainda não tinha diluído totalmente essa experiência negativa dentro de mim.
 Durante a gestação, eu lamentei a ausência de uma mama e esqueci de reconhecer que tinha outra plenamente saudável. Quantas vezes a gente não se concentra no que falta e esquece de agradecer pelo que tem?

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Tainã está com um ano e cinco meses e ainda mama. Um único seio tem sido mais do que suficiente pra atender as suas necessidades. E mais do que isso: eu produzo tanto leite que me tornei doadora de leite materno. Quanto mais eu amamento, quanto mais eu ordenho, mais eu produzo. E essa abundância me relembra diariamente a força da vida. 

Amamentar nunca foi um fardo, nem mesmo nas madrugadas longas. Para mim, a amamentação é uma evidência da minha própria potência, da vida que flui em mim. E, como se não bastasse, amamentar ainda previne o câncer de mama. Se um dia meu corpo carregou uma doença, hoje ele jorra vida. 

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Geyze
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