Para Inspirar

Pedro Pimenta em "De 1% de chance de sobrevivência a 100% de independência"

Na décima primeira temporada do Podcast Plenae, ouça os caminhos de superação trilhados por Pedro Pimenta.

20 de Março de 2023



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:


[trilha sonora] Pedro Pimenta: Quando eu acordei do coma, eu fui entendendo, mesmo dopado com um monte de remédios, que eu teria que ser amputado. Eu tinha sentimentos mistos sobre isso. Por um lado, eu queria que cortassem logo os meus braços e minhas pernas, pra eu poder ir pra casa. Mas, por outro, eu me agarrava a uma falsa esperança de que aquilo não fosse acontecer, sabe.  [trilha sonora] Geyze Diniz: A mudança no corpo de Pedro Pimenta não só o fez sobreviver, mesmo com poucas chances, mas o fez ressignificar e colocar em perspectiva o que de fato é importante. Sua busca pela reabilitação e resgate da autoestima hoje é exemplo para muitas pessoas. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

[trilha sonora]

Pedro Pimenta: O dia amanheceu ensolarado, meus pais viajavam de férias e eu estava sozinho em casa com o meu irmão do meio, o Lucas, e a então namorada dele. Eu acordei antes que eles e fui pro cursinho. Tinha 18 anos e estava estudando pra seguir os passos dos meus irmãos: entrar numa faculdade pública de engenharia. Às sextas-feiras, eu e alguns amigos do cursinho saíamos pra dar uma descomprimida no almoço. Só que nesse dia eu não consegui terminar de almoçar. Eu me senti bem mal. Pedi a conta, peguei o carro e voltei para casa. Quando eu cheguei, fui direto pro banho e vomitei dentro do chuveiro. Meus sintomas pareciam de dengue: dor de cabeça forte, febre, náusea, desconforto nas extremidades. Naquela noite, a gente ia sair pra comemorar o aniversário do Lucas. Mas como eu estava mal, o meu irmão mudou os planos e chamou os amigos pra irem lá em casa.

Eu não consegui me divertir naquela festa. Eu fui me deitar e acordei lá pelas 3 da madrugada, com dificuldade até pra me mexer. Logo eu chamei o Lucas. A namorada dele é médica e na época fazia residência em pediatria. Na hora que ela viu as pintinhas roxas nos meus braços e pernas, ela começou a gritar. Disse que a gente precisava ir correndo pro pronto-socorro. Os dois me colocaram no carro e me levaram pro hospital.  [trilha sonora] Já estava amanhecendo no dia 12 de setembro, quando eu fui transferido de ambulância pra outro hospital, em São Paulo. A essa altura, o meu irmão mais velho, o Daniel, também apareceu. E eu lembro que os três ficaram ali chorando, desesperados. Eu, que já estava com uma confusão mental, não entendi o porquê de tanto desespero. A ambulância seguiu muito rápido, varando os sinais de trânsito e o pessoal estava lá conversando comigo, tentando me manter acordado, mas uma hora eu desmaiei. Eu acordei em um lugar estranho, com meus braços e pernas enfaixados. Eu senti que eu estava amarrado na cama. Mas, na verdade, eu é que não tinha força para levantar o braço. E se eu tentava erguer um membro, vinha uma força gravitacional que parecia 10 vezes maior que a normal e me puxava pra baixo. Meu tio me explicou que já fazia uma semana que eu estava na UTI. Eu tinha contraído uma meningite meningocócica muito grave. A meningite é uma doença causada por bactéria, vírus ou fungo. O meu caso, pela gravidade, foi bacteriana, transmitida de pessoa pra pessoa pelas vias aéreas. Eu vinha de um ritmo muito intenso de estudos pro vestibular e estava dormindo muito pouco. O meu sistema imunológico enfraqueceu e a bactéria se instalou. Quando eu entrei no pronto-socorro, eu estava num quadro de choque séptico já, ou seja, de infecção generalizada.  Só o fato de eu ter despertado do coma já foi considerado um milagre. A minha chance de sobrevivência ali era menor que 1%. Eu só fui ter noção da gravidade do meu quadro na minha primeira troca das bandagens dos braços e das pernas. Eu vi meu braço todo preto. Tinha uma parte com o osso já carcomido. E eu acho que ali as drogas que os médicos me davam também tinham o objetivo de me deixar meio zonzo. Eu não estava 100% consciente. E, sinceramente, eu acho que era melhor assim. [trilha sonora] Mais ou menos depois de um mês de internação, veio a notícia que eu tanto temia. Eu seria amputado nos dois braços e nas duas pernas. A véspera da operação foi muito esquisita, porque eu tive meio que me despedir da minha família. Eu tinha plena consciência de que a minha chance de sobrevivência ali não era muito alta. E a família toda aquele dia veio me visitar. Tios, primos, estava todo mundo rezando pelo sucesso da operação. Mas o clima era de velório.  [trilha sonora] A cirurgia correu surpreendentemente bem. Mas o primeiro mês do pós-operatório foi o mais difícil. [trilha sonora] Teve as outras incontáveis cirurgias de enxerto, a depressão, o choque identitário de recuperar a consciência ali e perceber que o contorno do meu corpo tinha mudado. As minhas pernas amputadas acima dos joelhos. E os braços, acima dos cotovelos.  [trilha sonora] A ficha ainda estava caindo, quando o meu irmão me contou que ia ter um show do AC/CD em São Paulo. Eu sou muito fã da banda e estava internado num hospital que, por coincidência, é vizinho ao estádio do Morumbi, local do show. Eu infernizei os médicos e eles me autorizaram a ir. Só que não tinha mais ingresso. Aí a minha família entrou em contato com a organização e implorou pra liberarem a nossa entrada. Deu tudo certo. Eu entrei no estádio de ambulância e assisti ao show deitado numa maca. A família toda e toda uma equipe do hospital, que o médico fez questão de ter, foram juntos, incluindo até psicóloga. Naquelas duas horas, pela primeira vez em quase 3 meses, eu esqueci do meu problema. Pra muitos foi apenas um show de rock. Mas, pra mim foi o primeiro sinal de que ainda tinha muita vida a ser vivida pela frente.

[trilha sonora]

Eu voltei pro hospital e ainda passei lá o Natal, ano novo e o meu aniversário de 19 anos. Foram cinco meses e meio até a alta. Quando eu finalmente voltei pra casa, o meu pensamento era: “Beleza, resolvi o maior problema que eu tinha, que era não morrer. Mas agora eu tenho um problema gigante pro resto da minha vida. Como é que eu vou viver assim?”. Como eu ia escovar os dentes sozinho? Me trocar? Comer? Fazer as atividades mais básicas do dia a dia.  Durante o processo de reabilitação com próteses, eu procurei o máximo de informação possível. Porém o prognóstico dos médicos era de zero independência. Segundo eles, eu teria que usar cadeira de rodas e precisaria de cuidador em tempo integral. Pra sempre. Eu queria usar próteses pra caminhar pô, mas, sem as articulações - joelhos e cotovelos -, os médicos diziam que seria impossível. Segundo eles, se eu conseguisse dar alguns passos com próteses, já seria uma vitória. Então, a gente contratou um cuidador de segunda a sexta no horário comercial, que era o Silvio, e meus irmãos e meus pais se revezam no resto do tempo. Eu não tinha força nem pra me sentar sozinho. Colocaram uma campainha eletrônica ao lado da minha cama. E quando eu acordava, eu tocava essa campainha pro Silvio vir, me colocar de pé, me vestir e me botar numa cadeira. [trilha sonora] A perda de um membro é muito parecida com a perda de um ente querido. Aliás, os passos do luto são os mesmos nos dois casos. Tem a negação, barganha, raiva, depressão e só então a aceitação. Comigo foi igualzinho. No início, quando eu acordava de manhã, eu tinha aquele 1 segundo de paz, antes do mundo colapsar em cima de mim e eu voltar à realidade. Os fins de semana eram ainda mais difíceis. Os meus amigos iam muito lá em casa, mas eles também saíam pra balada, viajavam e chegavam contando aquelas histórias e eu ficava triste por não poder participar desses momentos. Eu alternava dias de bom humor com outros de: “poxa, quem que eu tô tentando enganar? Eu tô aqui tentando me manter feliz o máximo possível, mas a verdade é que eu tô parado e o resto do pessoal tá andando”.

[trilha sonora]

Eu procurei ocupar o tempo estudando produção de música eletrônica no computador. Eu sempre gostei de tocar instrumentos, e essa era uma maneira de continuar conectado à música. Eu estudava umas 8 horas por dia. Também peguei firme na fisioterapia e, três vezes por semana, eu ia pra clínica lá com o Silvio. Rapidinho, eu já conseguia me sentar sem precisar de ajuda. Foi uma baita vitória. 

[trilha sonora]

Na reabilitação, o pessoal da clínica comentou sobre um congresso de próteses e órteses, o maior do mundo, que aconteceria na semana seguinte. Eu fui pro congresso, peguei vários cartões de visita, entre eles o de um americano, o Kevin Carroll, vice-presidente de uma empresa chamada Hanger. Ele me falou: “Cara, a gente tá reabilitando pessoas que perderam as duas pernas acima do joelhos. A gente tem um protocolo que tá colocando a galera para andar e inclusive dirigir carros sem adaptação. 'Cê' tem tudo para dar certo. E se você fizer um esforço descomunal, vai conseguir”.


Eu nem dei bola, porque muita gente me prometeu maravilhas nesse congresso. Os caras querem vender, né? Então eu desconfiei, porque eu sabia que na época não existiam casos de sucesso com amputações iguais às minhas. Então, peguei o cartãozinho dele, guardei na mala, junto com os outros, e voltei pro Brasil. Seis meses depois, numa última tentativa, eu fui pra Chicago, nos Estados Unidos, pra me reabilitar numa clínica de lá. Eu continuava inconformado com a ideia de não caminhar. Passei três meses lá me reabilitando.

Faltava pouco tempo pra eu voltar pro Brasil, e eu ainda estava numa cadeira de rodas, quando eu vi na internet um vídeo que mudou a minha vida. Eram imagens de um californiano, o Cameron, que perdeu três membros num acidente de trem. Ele também teve as pernas amputadas acima dos joelhos. Só que não só andava, como descia uma rampa no vídeo com próteses nas pernas. Uma coisa inimaginável. Os joelhos são como dobradiças com um pistão hidráulico. Sabe aquelas portas que você abre e ela fecha devagar? Essa é a função dos joelhos protéticos. Você chuta o pé pra frente, a perna estende e dobra devagar, porque ela tem esse pistãozinho hidráulico. Porém, mesmo com esse sistema, é muito difícil caminhar. Quanto mais descer uma rampa! E o meu irmão, que estava ali comigo, achou que era uma montagem. Mas eu fiquei muito intrigado.

A empresa do vídeo era a mesma do cara que tinha me entregado aquele cartão, o tal do Kevin. Lembra dele? E eu liguei umas três vezes pra ele. Nas duas primeiras, caiu na caixa postal direto. Na terceira, ele atendeu. E por uma dessas coincidências no universo, ele tinha acabado de pousar em Chicago. Nesse mesmo dia, uma sexta-feira, às 10 da noite, ele foi lá no apartamento onde eu estava hospedado. E ele veio e disse: “Na semana que vem, vai ter um campeonato de triathlon pra amputados em San Diego, lá na Califórnia. E esse menino do vídeo vai tá lá. Você pode ir e ver com os seus olhos. Eu tô te dando o caminho das pedras. Se você não for, a escolha é sua”. 

[trilha sonora]

O meu irmão não queria ir. Ele tinha medo de eu alimentar falsas esperanças, talvez. Mas mesmo assim eu decidi ir a San Diego. E assim eu conheci o Cameron. Realmente… O cara fazia tudo que tava no vídeo! E com o incentivo dele eu consegui caminhar com as próteses, mesmo sentindo muita dor.

Eu mudei a data da passagem de volta pro Brasil e fui pra clínica de amputados onde o Cameron se reabilitou, em Oklahoma. Era aquela que o Kevin tinha comentado no congresso. Os caras têm um sistema bem radical, baseado em treinamento militar. Tanto é que eles chamavam de bootcamp. Quando a gente passa por uma amputação ou algo assim, é comum que vire o coitadinho da família. Mas lá em Oklahoma não tinha nada disso. Eles eram extremamente duros. Colocavam a gente para descer rampas mesmo sabendo que a gente ia cair. A ideia era aprender a levantar e continuar tentando. 


Não foi fácil encarar aquele treinamento, porque era muito doloroso andar. O enxerto de pele sangrava. Os músculos das costas doíam pra caramba. E eu comecei usando próteses baixinhas, dando passos bem curtos. Eu fui progredindo até chegar a quase 1 metro e 70 de altura. Quando eu voltei pro Brasil, eu doei a minha cadeira de rodas.

O segredo da minha reabilitação foi o resgate da sensação de pertencimento, de saber que eu não estava sozinho. Até conhecer o Cameron, eu não conseguia caminhar mais do que 20 passos com as próteses. Mas alguma coisa destravou na minha cabeça e eu encontrei uma energia extra dentro de mim. O ser humano é um ser social, ele precisa pertencer a alguma coisa, a algum lugar. Em Oklahoma, eu conheci um monte de gente sem um, dois ou até três membros. Várias pessoas tinham perdido duas pernas, acima dos joelhos também. E eu via que elas estavam em pleno crescimento na vida: nos estudos, no trabalho, no relacionamento… Algumas até tendo filhos. E aí eu percebi: “Opa, peraí. Eu também posso”. 

[trilha sonora]

Em pouco tempo, eu me tornei 100% independente. Passei a usar as próteses nos braços e a dirigir carro até sem adaptação. A partir daí, com muito esforço, claro, minha vida deslanchou. Eu me mudei pros Estados Unidos pra fazer faculdade. Me tornei um caso de tanto sucesso pra Hanger que eles me fizeram uma proposta de trabalho. No fim das contas, acabei ficando por lá sem previsão de voltar pro Brasil. Eu amava a vida que eu tinha. Eu estava feliz, trabalhando… Mas aí veio a pandemia. Como eu tive que migrar pro home office, eu acabei preferindo voltar pro Brasil e ficar perto dos amigos de infância e da família novamente.

[trilha sonora] 

Aqui no país, eu percebi que estávamos muito atrasados em relação a reabilitação de pessoas amputadas. E me veio um sentimento muito forte de que eu poderia contribuir para mudar esse cenário. Refleti muito e acabei pedindo demissão da Hanger. Abri a minha própria clínica e me casei com a Marcela, que eu tinha conhecido lá nos Estados Unidos. Escrevi um livro sobre a minha história e me tornei palestrante.

Eu digo que todos nós temos um super-herói dentro da gente. Todos nós temos uma força que a gente nem imagina que tem, e que pode superar barreiras inimagináveis. Ninguém precisa passar pelo que eu passei pra ter uma ótica diferente na vida. Com a minha história, eu sinto que eu sou pra outros amputados e até mesmo pessoas sem amputações o que um dia o Cameron e os veteranos de guerra foram pra mim. Eu quero fazer a diferença na vida do próximo. Porque assim eles também podem passar adiante a mensagem do poder da reabilitação e do resgate da autoestima. Quando eu chegar no fim da vida, eu quero olhar pra trás e ter uma boa sensação de missão cumprida.

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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.


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Para Inspirar

Regina Ramos em "De psicóloga para paciente"

Um câncer de estômago colocou em perspectiva toda sua vida e uma mudança de rota posterior foi necessária.

21 de Novembro de 2022



Leia a transcrição completa do episódio abaixo: 

[trilha sonora]

Regina Ramos: Durante uma fase da minha vida, eu entrei numa pilha de ter sucesso profissional, trabalhar demais e só correr atrás de dinheiro. Eu buscava a felicidade fora de mim e, sem perceber, fui me afastando da minha essência. Eu precisei adoecer gravemente para me reencontrar. Eu coloquei a vida nos trilhos novamente e, hoje, ajudo as pessoas a encontrarem a felicidade dentro de si mesmas.

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 Geyze Diniz: A psicóloga Regina Ramos, que sempre buscou entender porque as pessoas ficavam doentes, adoeceu gravemente sem perceber. Vivendo em piloto automático, ela depositava sua felicidade no sucesso profissional e financeiro. Mas ao descobrir um câncer de estômago, Regina colocou seus objetivos em perspectiva e desenvolveu resiliência e uma força interna que a ajudou a se reconectar com ela mesma.

Ouça no final do episódio as reflexões do historiador Leandro Karnal para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

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 Regina Ramos: Por que as pessoas ficam doentes? O que acontece dentro delas a ponto de desenvolverem uma doença? Essas perguntas me intrigam desde o início da minha carreira como psicóloga. Quando eu me formei na faculdade, eu poderia ter seguido por vários caminhos profissionais. Só que eu senti um chamado para trabalhar numa instituição hospitalar. Eu passei em um concurso do Hospital das Clínicas, o HC, em São Paulo, e escolhi atuar junto a uma equipe multidisciplinar no departamento da gastroclínica. Não sei explicar o porquê, mas eu decidi atender pacientes com câncer de estômago.

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O câncer é uma doença multifatorial, ele é ligado à genética, ao ambiente e aos hábitos, por exemplo. Mas eu acredito que a doença também pode estar relacionada a dificuldades em você lidar com o estresse e com as emoções. Eu observava isso no HC. Todos os meus pacientes, ao sentirem a iminência da morte, refletiam sobre as suas vidas. Eram pessoas em estado de muito sofrimento psíquico e com histórias de vida pelas quais eu tinha muito carinho, cuidado e respeito.

 [trilha sonora]

 Eu trabalhei no HC por 6 anos. Eu saí de lá porque eu senti um outro chamado. Eu queria trabalhar na área de desenvolvimento humano, com treinamentos em empresas. Mas a pergunta interna ainda me perseguia: por que que as pessoas adoecem? No mundo corporativo, ficou claro que o estresse e a corrida insana em busca do sucesso afastavam as pessoas de si mesmas. Elas buscavam a felicidade fora, não dentro de si. Sem perceber, eu fui me tornando uma dessas pessoas, vivendo totalmente longe de mim. Eu trabalhava muito, me alimentava mal, não me exercitava e focava toda a minha energia em ganhar dinheiro.

 [trilha sonora]

 Um dia, uma colega da empresa perguntou se eu conhecia o trabalho biográfico. Eu nunca tinha ouvido falar, mas fui pesquisar. A metodologia biográfica é baseada na teoria dos setênios e nas leis biográficas que regem os grandes ciclos da vida humana em ritmos de 7 em 7 anos. Cada fase tem um papel no nosso desenvolvimento. O propósito do trabalho biográfico é você resgatar tudo o que aconteceu na sua vida de 0 a 7 anos, de 7 a 14, 14 a 21 e assim sucessivamente, até chegar na sua idade atual. A gente une o passado e  o presente pra que o futuro aconteça com escolhas pessoais mais conscientes. Em resumo: “Tomar a vida nas próprias mãos e decidir a direção que queremos dar a nossa vida”.

Quando eu fiz a minha retrospectiva biográfica, eu estava com 42 anos. A partir dessa idade, segundo a teoria da biografia humana, o plano espiritual começa a se tornar mais importante que o físico. E aí eu percebi que tinha alguma coisa fora do eixo. Eu estava mais materialista do que nunca. No fundo, eu sabia que eu precisava corrigir a rota. Mesmo assim, eu liguei o piloto automático e segui na minha rotina de executiva de RH. Continuei depositando a minha felicidade no sucesso profissional e financeiro.

 [trilha sonora]

 Passaram-se alguns meses, até que um dia eu senti uma forte pontada no estômago. Foi durante uma partida de futebol dos meus filhos. Foi só uma pontada, mas o suficiente pra me acender um alerta. Eu telefonei pra um gastroenterologista, amigo meu desde os tempos do HC, e ele pediu uma endoscopia. Eu fiz o exame e abri o resultado numa sexta-feira à noite, sozinha, em casa. Na segunda seguinte, eu fui ao consultório do médico e falei: “André, eu estou com câncer, por favor não me esconda nada”. Após ler o laudo, ele muito emocionado, se expressou assim: “Rê, é a primeira vez que um paciente me dá o diagnóstico. Eu tenho que te operar amanhã”.

 [trilha sonora]

 O câncer de estômago não tem sintomas tão claros e eu tive sorte por ter conseguido um diagnóstico precoce. Porque - como todo câncer - quanto mais cedo a gente descobrir a doença, maior a chance de cura do paciente. Só que meu caso era gravíssimo e eu entendi que precisava de uma ajuda superior, porque o sucesso da operação não dependeria só de mim e da equipe do André.

 [trilha sonora]

No dia seguinte à consulta, fui à igreja Nossa Senhora de Fátima, sentei no primeiro banco e supliquei: “Nossa Senhora de Fátima, eu preciso da sua ajuda. Eu entrego a minha vida nas suas mãos”. Na véspera da operação, eu tive uma sessão com a minha psicóloga e perguntei pra ela: “Márcia, e se não der certo?”. Tipo assim: se eu morrer amanhã? Ela, muito carinhosamente, com o olhar fixo me respondeu: “Tem coisas na nossa vida que estão acima de nós!”.

Eu entendi a minha limitação e aí, eu fui aprendendo o meu lugar em relação a Deus. Na véspera da cirurgia, eu rezei com os meus filhos, de 9 e 6 anos, antes de dormir. A gente fazia aquele ritual sempre, mas aquela oração foi muito forte e especial para mim porque, ao final, eles disseram: “Papai do céu proteja a nossa mamãe amanhã”.

Neste mesmo dia, ao final da tarde, eu estava preocupada com o André, pois sabia que me operaria e que seria um desafio por eu ser sua amiga. Queria falar alguma coisa para ele e não sabia o quê. Foi então que fui a uma papelaria comprar uns cartões pois eu queria escrever alguma coisa pra minha família, pros meus filhos e pros meus amigos.

Quando cheguei no caixa para pagar, tinha um livrinho desses pequenos, e ao abrir estava escrito um diálogo entre um médico e Deus. O médico perguntava: “Deus, o que eu faço para salvar minha paciente?”. E Deus respondeu: “Você faz a parte do médico e eu faço a parte de Deus”. Foi isso que eu falei para ele no centro cirúrgico e pra minha felicidade, todo mundo fez a sua parte.

 [trilha sonora]

 Eu fui submetida a uma gastrectomia total, exatamente uma semana após ter aberto o laudo do exame. O meu estômago inteiro foi retirado. Os médicos fizeram uma ligação direta entre o intestino e o esôfago. A minha prima e a minha irmã, que cuidaram de mim no hospital, colocaram uma foto dos meus filhos sorrindo, bem em frente à cama. Quando eu acordava, a primeira imagem que eu via era essa. E eu pensava: “Eu quero encomendar os santinhos da primeira comunhão, como também eu quero dançar a valsa de formatura com eles”.

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 A esperança de ver meus filhos crescerem me deu muita força pra encarar o pós-operatório, a quimio e a radioterapia. Foi um período de bastante reflexão e muitos desafios. Eu, que a vida toda busquei entender porque que as pessoas ficavam doentes, adoeci gravemente. A minha sorte foi que, quando o câncer chegou, eu já tinha começado a ter uma visão espiritualizada da saúde.

 A biografia humana e a teoria dos setênios fazem parte da antroposofia, uma ciência humanística criada pelo filósofo Rudolf Steiner. Ela tem um olhar ampliado pro ser humano, que inclui o aspecto da espiritualidade. Pros médicos antroposóficos, uma doença não vem pra nos matar. Ela vem pra nos curar quando não estamos alinhados ao nosso propósito de vida e a nossa missão.

Em nenhum momento eu me vitimizei. A minha grande pergunta interna não era “por que” isso aconteceu comigo, mas sim “para que” estou passando por isso. Qual aprendizado que eu devo tirar dessa experiência? Afinal, sem querer, eu tinha mudado de lado: eu passei de psicóloga a paciente. Comecei a perceber que, quanto mais eu buscava meu autoconhecimento, mais eu tinha clareza nas respostas. As explicações estavam dentro de mim e não fora. Eu me dei conta que tudo isto que estava acontecendo era para me ajudar a colocar em ordem tudo aquilo que estava em desordem. O que parecia o fim, foi só o começo.

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 A possibilidade de morrer me fez entender o que que era importante na minha vida. Eu aprendi rapidamente a valorizar o que eu tinha, não o que eu deixei de ter. Aprendi a ser menos verniz e a ser mais raiz. Pouco tempo depois da cirurgia, um repórter me perguntou como é não ter estômago e ouviu como resposta: “Eu não estou preocupada em não ter estômago. Pra mim, o que importa é poder ir na formatura dos meus filhos”. E não é que os dois estão formados? Dançar a valsa com um deles, ouvir o juramento na colação de grau do outro e ganhar de presente  “Obrigado, mamãe, obrigado” me fazem ter a certeza de que tudo valeu a pena!

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 A minha vida passou a fluir realmente depois desse processo. Sem estômago, eu fui obrigada a reaprender a comer e parei de me alimentar com besteiras. Comecei a me exercitar. Eu fiz pilates, caminhada, corrida e zouk. Na vida afetiva, saí de um casamento que já não estava legal havia tempo.

Eu diminuí o ritmo de trabalho e me tornei pesquisadora junto a uma equipe de médicos antroposóficos na Escola Paulista de Medicina. Há 13 anos, eu estudo a teoria da Salutogênese. “Salus” quer dizer saúde, e gênese origem, ou seja, como encontrar dentro de nós as forças que nos blindam diante do estresse para que não cheguemos a adoecer.

Essa abordagem foi criada por um sociólogo chamado Aaron Antonovsky. Ele pesquisou o que havia em comum entre os sobreviventes do Holocausto que se adaptaram às mudanças,  reconstruíram as suas vidas e não adoeceram. Ele constatou que essas pessoas não se colocavam na posição de vítima e tinham um olhar positivo para a vida, mesmo passando por adversidades. Elas tinham também internamente o que ele denominou “senso de coerência”: um equilíbrio psíquico entre o que pensavam, sentiam e como agiam. Mas, o mais importante, ele ressaltou, é que elas sempre encontravam um sentido maior no sofrimento, um significado para poder continuar adiante.

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 Eu mergulhei na Salutogênese e me tornei especialista no tema da resiliência. Resiliência tem a ver com fé, com esperança, com você olhar para o problema e pensar: eu vou passar por isso, eu já passei por outras fases difíceis, os problemas não irão durar para sempre, eu posso fazer alguma coisa e eu também posso pedir ajuda. E aí, com o impulso dessa força interna, seguimos adiante, temos uma melhor proteção diante do estresse, não deprimimos e o nosso sistema imunológico não sofre alteração e, então, não adoecemos.

O segredo é a gente ter flexibilidade e não ficar nos extremos, nem ser totalmente vulnerável nem se achar a Mulher Maravilha ou o Super-Homem, que enfrenta tudo que aparece. Com o autoconhecimento, a gente conhece os nossos limites e sabe até onde podemos ir. O conceito de resiliência que eu acho legal é passar pela situação difícil e sair mais fortalecido dela. É como um músculo que você trabalha na academia, só que um músculo emocional, que você sempre pode fortalecê-lo.

Quando eu dou uma aula, palestra ou um treinamento, eu compartilho o meu exemplo. O pessoal se espanta de saber que eu vivo bem sem um estômago. Eu sempre digo para eles uma frase de uma meditação: “Nada terá valor se a coragem nos faltar”.

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 Eu tenho gratidão por ter conseguido aprender na minha vida com os momentos de adversidade e ter me fortalecido. Meus colegas brincam que meu nome devia ser “Regiliência”. Eu uso o meu aprendizado para ensinar outras pessoas que elas não precisam chegar ao ponto de desenvolver uma doença. Tem muita coisa que a gente pode fazer antes.

Com o trabalho biográfico, eu ajudo as pessoas a encontrarem a resiliência na sua própria história de vida e a entenderem que essa força interna aparece nos momentos mais difíceis. Quando a gente se apropria dela, temos mais habilidades para enfrentar os problemas que possam surgir. Descobrir essa força interna que cada um de nós tem e muitas vezes não percebe é o caminho para viver com saúde.

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 Leandro Karnal: O caso da Regina Ramos é muito interessante. Como muitos de nós, somos estimulados a buscar na carreira um grande eixo da vida. Uma pessoa que está ganhando dinheiro, que é citada profissionalmente, que tem muitos clientes ou pacientes, é uma pessoa respeitada. Ela ganha prestígio social, vai recebendo um retorno positivo desse esforço e vai se sentindo bem. Só que às vezes este bem funciona como uma espécie de anestésico que, sim, evita a dor, mas não impede que a doença progrida.

Ela precisou ter um grave caso de câncer de estômago, fazer uma cirurgia delicadíssima que obriga a uma reeducação absoluta depois da cirurgia pra que ela pudesse acordar para outros valores que ela já tinha, mas que agora terá um outro olhar, e vai parar de pensar que a vida é feita exclusivamente do sucesso e da aplicação do sucesso profissional.

A Regina foi descobrindo como paciente o que talvez ela dissesse para seus outros pacientes: que ela de fato tinha que reinventar propósitos, tinha que reinventar na mente  seus valores, tinha que redefinir metas, que não podia ficar apenas focada em um campo. E foi redescobrir-se profissionalmente, foi revalorizar coisas da família, passou a desenvolver muito esse conceito de resiliência e conseguiu redefinir as coisas a partir de uma experiência impactante que é o câncer no estômago. Muitas vezes, a dificuldade tem esse poder de epifania, de revelação de quem nós somos de verdade, que é o que aconteceu com a Regina.

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