Para Inspirar

Mariana Kupfer em "Mãe não é um estado civil, é um estado de amor"

O sonho da maternidade é capaz de transpor barreiras sociais e físicas. Conheça mais sobre a história de Mariana Kupfer, no Podcast Plenae

4 de Outubro de 2020


Leia a transcrição do episódio completo abaixo:

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Mariana Kupfer: A maternidade é a relação mais profunda que já senti e esse desejo de ser mãe não é algo que nasceu na adolescência, quando estava crescendo. Eu me lembro dele vir desde muitos antes, nas brincadeiras de criança, com bonecas, eu sempre era a mãe da minha Barbie. E com o tempo me tornei aquela amiga que cuida das outras. Nas duas situações, acho que a razão tem a ver com essa vontade que sempre correu nas minhas veias e permeava a vida que eu desejava pra mim. Lembro que na adolescência eu tinha algumas certezas, mas duas delas sempre me acompanhavam: eu iria trabalhar com comunicação e iria ser mãe.  [trilha sonora] Geyze Diniz: Eu sempre admirei a coragem e a determinação da Mariana, minha amiga há bastante tempo, na decisão de ter uma filha sozinha. Hoje, vamos ouvir essa história de dedicação e amor entre mãe e filha. No final do episódio, você ouvirá reflexões do doutor Victor Stirnimann para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Aproveite este momento, ouça e reconecte-se.

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Mas eu não pensava nisso o tempo todo e não tinha ideia de como seria o meu caminho até este momento. Isso começou a ficar claro quando eu tinha entre 32 e 33 anos.  Eu estava numa relação e a pessoa não sabia se queria ter filhos. Mas para mim, que nunca tive essa dúvida, começou a vir forte e de maneira definitiva a vontade de concretizar esse desejo de criança e de adolescente. Embora eu seja uma geminiana divagadora, sou muito objetiva também. E a decisão foi muito rápida para mim.  [trilha sonora]

Como eu sempre fui uma pessoa muito cautelosa com a saúde, daquelas que fazem consultas rotineiras sem falhar, sempre muito organizada e com todos os exames em dia, eu levei primeiro o assunto para o consultório, em um visita ao doutor Marcelo Zugaib, que era meu ginecologista desde os 18 anos. 
Falei: "Nossa, Doutor Marcelo, como eu quero ser mãe!" e na mesma hora, começamos a falar de reprodução solo, independente. Naquela época a ideia era pulverizada mesmo na Europa e nos Estados Unidos, aqui ainda não. Mas eu conhecia algumas pessoas que já haviam passado pelo processo e decidi ir em frente. Era hora de construir a relação de afeto, amor e conexão mais importante da minha vida.  [trilha sonora]
Durante essa consulta, decisiva, o Marcelo falou: "Olha, eu não faço reprodução assistida, mas o Doutor Paulo Serafini, na Clínica Huntington, faz, e é um colega respeitadíssimo". Fui para casa e imediatamente comecei a pesquisar tudo que eu podia sobre a clínica e sobre o doutor Paulo, pioneiro e um dos papas da fertilização in vitro.  [trilha sonora] Depois de descobrir tudo que tinha disponível sobre ele, marquei uma consulta sem compromisso. Era maio de 2009, eu tinha 33 anos, em junho faria 34. E foi maravilhoso. Logo no primeiro encontro, senti aquela empatia, uma coisa imediata. O doutor Paulo, um cara com uma literatura super vasta do assunto, me contou casos, histórias da profissão dele e me apresentou de um jeito leve todo esse universo da reprodução assistida. Eu estava segura e plena da minha decisão. 
Mas tinha no caminho uma decisão importante: o doador. Paulo, que trabalhou por anos na Califórnia, me contou sobre clínicas muito idôneas nos Estados Unidos e de como seria o processo. Ser doador lá é uma profissão, então seria com certeza um homem que passou por muitos exames, pente fino mesmo. 
Fui para casa e fiquei completamente focada, fiz um mergulho profundo no assunto nos sites que ele tinha me passado. Durante todo o fim de semana, eu só parei para comer e dormir. Foram três dias intensos e que não me deixaram mais dúvida do que faria. Se você ficar pensando muito... E se isso, e se aquilo, e se, e se... O que os outros vão pensar? O que que eu vou dizer para a minha filha? Não dá. 
Não tem essa de ter uma fórmula definida. Ser mãe é uma construção, um caminho, e não dá para percorrer um caminho sem ir em frente. Vai ser tortuoso, não tem muita escapatória, tem que decidir e encarar. E é emocionante, mesmo com as dificuldades. A minha gestação, intensa e com uma complicação que me acompanhou o tempo todo, me fez entender tudo isso antes mesmo de pegar a Vitória no colo pela primeira vez.  [trilha sonora]
Vivi momentos difíceis e uma enorme ansiedade quando me vi em constantes enxaquecas, quase sem força, vomitando 30, 40 vezes em um dia. Eu deixava baldes espalhados por toda a minha casa e eu ia me arrastando como uma lagartixa pro banheiro. Aí recebi o diagnóstico: tinha uma Hiperemese Gravídica muito severa. Grande parte dos 9 meses eu fiquei internada e, quando eu estava em casa, sempre tinha uma assistência de home care. Tinha horas que me sentia o mais perto da morte que dava pra chegar.  [trilha sonora]
Medo de perder eu não tive em nenhum momento, mas entendi que teria que lidar com essas sensações até o parto. Tem uma hora que você pensa "eu não vou aguentar", "eu não vou conseguir". Mas conseguimos. Nas horas mais difíceis, eu me agarrava no amor que levava literalmente dentro de mim e seguia em frente. 
Eu sabia que eu estaria sozinha na gestação, mas viver a gravidez com essa condição foi uma provação dupla. Mas vinha uma força, porque eu estava realizando o desejo profundo que eu tinha, por mais difíceis que fossem as circunstâncias. O que me movia era o meu sonho, era a Vitória, era que a minha filha nascesse com saúde. Só precisava cuidar da ansiedade.  [trilha sonora]
Durante toda a gravidez, eu fiz terapia lacaniana e era um outro jeito de vomitar, nesse caso, todas as angústias de não saber tudo que imaginava precisar saber pra ser mãe. Daí, em uma das primeiras consultas, a minha terapeuta olhou para mim e falou: "Olha, isso não é uma receita de bolo, é uma coisa que você vai elaborar". Essa frase está até agora comigo. Grandes aprendizados muitas vezes estão em frases bem simples e eu tento levar isso adiante, compartilhar com outras mães, pela potência que entendi que esse sentimento tem.  [trilha sonora]
Sinto o efeito dessa reflexão tão simples nos muitos contatos que tenho com outras mulheres, que querem ter ou já tiveram filhos, em cada retorno inspirador que recebo depois de lançar meu livro e das tantas conversas que tenho no meu programa. Muitas querem essa receita de bolo, mas eu sempre digo isso: cada família é uma construção, tem o seu universo particular, a sua dinâmica. No caso da mãe solo, você pode, por exemplo, pensar em como vai ser sem ter um pai, como é o caso da Vitória. Mas não tem resposta. Só sei dizer que o que eu vejo vindo da minha filha, que está com 10 anos, das questões que toda criança na pré-adolescência tem, os desafios, os limites, o fato de ela não ter pai é o menos relevante. Ela é muito forte e muito bem resolvida com isso, ainda que falte entender muita coisa.  [trilha sonora]

Se faz falta um pai? Bom, quando você viaja e tem que tirar as malas pesadas da esteira ou do carro, fazer o check-in no hotel, dirigir, nesses momentos, talvez. Com tudo que vivi na maternidade, não tem como fugir do clichê de que o parto é uma experiência sobrenatural e ninguém te prepara para aquilo. Outras mulheres podem te descrever em detalhes por uma hora, por dois dias, por cinquenta, o que é o parto. Mas é só vivendo essa experiência que você entende o que acontece naquele instante. É um presente sobrenatural. Como decifrar um milagre? Não dá. E é realmente o milagre da vida, aquele momento em que você passou 9 meses com dois corações batendo dentro de você e, no minuto seguinte, você consegue sentir esse mesmo coração batendo sozinho, chegando no mundo. 
Essa emoção eu carrego todos os dias, na apresentação de ballet, no jogo de futebol, quando ela chora porque está sofrendo e eu não posso sofrer por ela. Eu tenho que dar a ela o que ela precisa pra lutar, buscando em tudo que tenho em mim e no que estou aprendendo junto com ela. Preciso estar perto pra ensinar e aprender. Mas não é só isso, não é só o contato. 
O sentimento de que é sobrenatural passa por aí, por uma relação que não é física. Eu choro quando ela me escreve uma carta ou quando eu vejo ela realizada, construindo as coisas por mérito dela. Ou quando vejo o carinho das pessoas e vejo elas elogiando a mulher que minha filha está se tornando. 
Ah! Teve uma vez que me emocionei demais, que foi na primeira vez que ela abraçou o Mickey e a Minnie. Pode parecer uma coisa boba, mas ela chorou muito, eu chorei muito e foi lindo. Essa viagem pra Disney foi muito emocionante, porque me deu a sensação de voltar no tempo, me fez lembrar de mim com 8 anos com as minhas irmãs em uma viagem pra Disney com meu pai. Me deu uma nostalgia, uma felicidade boa. Meu choro era de alegria. Caiu a ficha de que eu fiz a produção independente, venci, estou com a minha filha na Disney, feliz de ver que meu trabalho me permite proporcionar para a Vitória o mesmo que meus pais proporcionaram pra mim. E quando ela via os personagens, ela pulava, gritava, chorava de alegria. Foi muito fofo e muito emocionante levar a Vitória até lá.  [trilha sonora] É mágica essa relação tão profunda, que faz a gente viver de modo tão grande momentos que podem parecer pequenos aos outros, porque estão no dia a dia da gente e só da gente, na minha vida e na da Vitória. É uma relação que abre espaços, que se faz dentro de você fisicamente e nunca deixará de estar dentro de você. Uma vida que começa ali e é parte da sua. 
Sempre existirão julgamentos e maldades em qualquer modelo ou concepção familiar e é claro que às vezes a gente fica muito ferida, mexida. Mas eu vou pelo caminho do amor. Ser mãe é agarrar nesse sentimento e caminhar, lembra? Nesse caminho da maternidade a gente acaba entendendo muitas coisas sobre nós, mulheres. E uma das coisas que aprendi fazendo o programa AMAR, entrevistando muitas e muitas mães, é que maternidade não é um estado civil, não é ser casada, não segue um modelo padrão. Você pode estar casada, com uma família de comercial de TV, com RG com nome, sobrenome de um casal, um estado civil, e no fundo ser uma baita solidão. Eu sou mãe solo, mas mãe é mãe.
De novo, lembro da minha terapeuta: "Isso não é uma receita de bolo, é uma coisa que você vai elaborar". E sabe por que que eu insisto nessa reflexão? Porque parece difícil e em alguns momentos pode dar medo, parecer que não vai dar certo, que você não vai conseguir. Mas vai e não dá mesmo para explicar essa certeza, como não dá pra explicar uma mágica, um milagre. É se agarrar nesse amor inexplicável e seguir caminhando.
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Victor Stirnimann: Muitas vezes o segredo para uma vida melhor está em transferir a energia de todos os conflitos, todos os problemas para essa conquista maior que é a entrega de nós mesmos, o colocar a necessidade de outra pessoa na frente da nossa. Essa é uma iniciação pelo o amor e um caminho, às vezes até mais difícil do que aquele que a vida vinha oferecendo, mas que se alimenta de uma certeza, uma razão que vem de outro lugar. Nem sempre conseguimos explicar de onde vem o chamado, a fé de que esta é a direção certa, por isso parece até que existe um destino e que ele dirige o nosso futuro. Mas a escolha que conta, a coragem de aceitar o convite e o risco que vem com ele é sempre nossa. E sim, em geral, sempre estamos buscando uma solução, se possível, bem fácil e rápida. E quando nós vivemos esse desafio maior, nosso caminho escolhido, estamos fazendo uma descoberta incrível: não é a solução que nos fortalece, é o convívio com o próprio problema. Isso é o que a Mariana aprendeu na sua escolha de ser mãe independente, isso é o que ela repete ao lembrar o conselho da terapeuta. "Felicidade é se dedicar todos os dias ao desafio que você escolheu". Se realiza quem descobre a escolha que pode fazer, a escolha que precisa fazer. Como disse alguém muito sábio: "O problema é um poema. Escolha bem o seu, mesmo que primeiro tenha sido ele a escolher você." [trilha sonora]

Geyze Diniz: As nossas histórias não acabam por aqui. Acompanhe semanalmente nossos episódios e confira nossos conteúdos em plenae.com e no perfil @portalplenae no Instagram.  [trilha sonora]

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Para Inspirar

Ingrid Silva em "O ballet clássico precisa evoluir"

A oitava temporada do Podcast Plenae está no ar! Confira a história da bailarina Ingrid Silva. Aperte o play e inspire-se!

5 de Junho de 2022


Leia a transcrição completa do episódio abaixo:


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Ingrid Silva: Eu sempre fui magérrima, com 45 quilos. Mas, como boa brasileira, tenho curvas. Aos 13 anos, ouvi de uma professora de balé a frase que foi o meu primeiro gatilho sobre o meu corpo. Ela disse: “Ingrid, ou você coloca o seu bumbum pra dentro ou nunca mais vou te corrigir”.

Se você fez balé clássico, provavelmente já ouviu algo semelhante. Até hoje eu não descobri como se coloca um bumbum pra dentro. Esse tipo de correção só existe porque o balé foi criado nas cortes da Europa, onde os corpos são muito diferentes dos brasileiros. 


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Geyze Diniz: Carioca, determinada e brilhante. Esses são só alguns adjetivos do nosso orgulho brasileiro: Ingrid Silva. Nos palcos do Rio de Janeiro ou de Nova York, Ingrid dribla com maestria os obstáculos da vida e abre caminhos para um balé e um mundo mais justo e inclusivo. 


Conheça a história da bailarina Ingrid Silva pelos palcos da vida e do mundo. Ouça no final do episódio as reflexões do rabino, escritor e dramaturgo Nilton Bonder para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.


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Ingrid Silva: Eu venho de uma família humilde. A nossa casa fica na zona norte do Rio de Janeiro. Minha mãe matriculava meu irmão e eu em todos os cursos que tinham na Vila Olímpica da Mangueira, que fica ali pertinho. A gente fez natação, futebol, ginástica olímpica, basquete, artes marciais, capoeira. Quando eu tinha 8 anos, ela me inscreveu em um projeto social chamado Dançando para Não Dançar. Eu nunca tinha ouvido falar de balé, mas passei na audição e o balé nunca mais saiu da minha vida.


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Eu aprendi a dar as minhas primeiras piruetas numa sala pequena, com piso de linóleo, barras nas paredes e o calor abafado do Rio. Aos 11 anos, fiz uma audição na Escola de Dança Maria Olenewa, do Theatro Municipal, e passei a estudar lá também. Foi nessa escola que uma professora me chamou a atenção para um aspecto que eu não tinha percebido em mim mesma. Ela me disse: “Você tem talento, mas não vê a dança como carreira. Sabe por quê? Você não acredita em si mesma”. 


E ela estava certa. Eu não me achava boa o suficiente. Além disso, eu não via ninguém parecido comigo nas grandes companhias de balé do Brasil. Quando eu saí do subúrbio, me dei conta que o balé era (e ainda é) uma arte elitista. Eu sempre fui uma das poucas negras e periféricas de qualquer turma de dança. Olhando pra trás, eu percebo que a ausência de representatividade me trazia um sentimento de não pertencer àquele universo. 


A minha falta de autoconfiança se refletia no palco. Eu não gostava de dançar na frente. Eu tenho 1 metro e 57 de altura e preferia me esconder atrás das outras meninas. Um dia, a Bethânia Gomes me viu dançar numa sala de aula e me deu uma chamada por causa disso. A Bethânia era a primeira bailarina na Companhia Dance Theater of Harlem naquela época. Ela me disse: “Ei, você! Vem pra frente. Você não é alta, não pode ficar atrás. Você tem que se acostumar a ficar na frente”. 


A Bethânia me achou talentosa e sugeriu que eu tentasse uma bolsa de estudos na Dance Theatre of Harlem, a única companhia no mundo a ter mais bailarinos negros no seu corpo de baile. O grupo foi fundado em 1969 pelo Arthur Mitchell, o primeiro bailarino negro a assumir o posto de bailarino principal no New York City Ballet.

Ele queria oferecer às crianças do Harlem, o bairro onde ele cresceu, a oportunidade de mudar o seu futuro. 
Eu fiz um vídeo-audição e mandei pros Estados Unidos pelo correio. Fui selecionada entre mais de 200 concorrentes para participar de um curso de verão na companhia. Eu cheguei a Nova York em 2007. 


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Lembro até hoje da sensação de abrir a porta da Dance Theatre of Harlem e ver todos aqueles bailarinos negros, como eu. Eu senti um acolhimento que, até então, eu não conhecia. Foi emocionante conhecer o Mister Mitchell pessoalmente. Eu estava no estúdio 3, em uma sala ampla e luminosa, e esperava encontrar um cara com roupas de dança. Mas ele entrou de terno e bengala. Ele era um homem muito elegante. Ele se sentou numa cadeira especial e eu senti uma pressão enorme. Tremia que nem vara verde, nervosa, pensando: “Como assim? Ele fundou isso aqui?”. 


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Eu não falava inglês, mas entendia os comandos em francês. Em um momento da audição, ele pediu que a gente fizesse um port de bras, um movimento com os braços. Eu fiz, mas sempre acanhada, e ele disse: “Se você não levantar essa cabeça e se impor, te mando de volta pro Brasil”. 


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A Dance Theatre of Harlem foi o único lugar onde nenhum professor questionou o tamanho do meu bumbum. O foco das correções eram outros: a minha técnica, o movimento dos braços, a leveza e os passos. Hoje eu tenho consciência que o meu bumbum não atrapalhava em nada os meus movimentos. Só atrapalhava na cabeça de quem dava aula. Mas essa ficha demorou pra cair.


No imaginário das pessoas, existe um corpo ideal da bailarina, que é de uma mulher extremamente magra, alta, com ombros finos, pescoço longo, cabeça pequena, seios pequenos, sem músculos aparentes, sem bunda e com uma certa aparência facial. É um biotipo completamente diferente do meu, que eu nunca atingiria de maneira saudável. 


Eu não acredito nesse corpo extremamente magro, que abre portas para distúrbios alimentares e psicológicos. Em escolas antigas, como o Bolshoi, até hoje é feito um estudo no corpo da criança, para saber se ela pode entrar na escola. Dependendo da abertura do quadril, ela não é aceita. Mas quem garante que o corpo dessa criança não vai mudar? Todos nós estamos em constante mudança. 


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Essa paranoia do corpo ficou ainda mais evidente pra mim, depois que eu me tornei mãe. A gravidez é um tabu no balé. Muitas bailarinas clássicas querem ter filhos, mas não concretizam esse sonho, por medo de não conseguirem voltar ao balé.

Existe um mito, não só no balé, de que a mulher não pode ser mãe e profissional de alta performance ao mesmo tempo. Ninguém fala isso para os homens! Eles têm filhos e continuam dando piruetas e dirigindo companhias, mas a mulher não pode? É possível, sim, ter filhos e voltar ao palco. 


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A minha consciência sobre o meu corpo negro se estendeu também ao meu penteado. A minha mãe começou a alisar o meu cabelo lá pelos 12 ou 13 anos. Eu só fui assumir os meus cabelos naturais mais de uma década depois. Quando eu fiz a transição capilar, recebi muitos elogios, menos da minha mãe. Ela não gostou muito da ideia não. Quando me viu, perguntou: “Que cabelo é esse, Ingrid? Por que você mudou?”. Eu respondi: “Porque eu sou esta pessoa e eu me amo assim”.


Ela claramente não entendeu e disse que estava feio. Eu expliquei que não me sentia confortável em viver um padrão que não era o meu. Expliquei que, em Nova York, pela primeira vez, eu tinha a liberdade de ser quem eu queria, sem medo e sem vergonha. Essa conversa mudou a mente dela e ela mesma fez a transição um tempo depois. 


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O penteado, obviamente, não atrapalhou em nada na minha dança. Desde que o balé clássico existe, o coque da bailarina precisa ser super esticado, com coque preso na redinha e nenhum fio fora. Eu continuo fazendo isso, mas com um coque afro. Eu mostrei pra outras pessoas que é possível sim ser bailarina clássica e ter um black power.

Virei referência no assunto e fui a primeira bailarina negra brasileira a sair na capa da
Pointe Magazine, uma das revistas mais importantes e respeitadas no mundo da dança. No ensaio de fotos, eu tô com os meus fios soltos e naturais, quebrando as barreiras do conservadorismo. A transição capilar foi uma das coisas mais importantes que eu fiz na minha vida. Se eu soubesse que era tão bom, teria feito antes.


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Mas, esse é o tipo de coisa eu não tinha noção quando era mais novinha. Eu também não tinha noção sobre um detalhe que parece pequeno, mas não é: a cor do uniforme do balé. No Brasil, eu sempre usei meia-calça e sapatilhas da cor rosa. O ponto é que pra nós, bailarinos, a meia-calça e a sapatilha são a continuação do nosso corpo. Então, o rosa é o tom mais próximo da pele europeia, por isso foi adotado como modelo.


Quando eu cheguei nos Estados Unidos, aprendi com outros bailarinos a pintar a minha sapatilha com uma base líquida no tom da minha pele. É um padrão que o Mister Mitchell, um homem visionário, implantou nos anos 70 na companhia. Na Dance Theatre of Harlem, o uniforme é da cor da pele de cada bailarino e não rosa.


Eu passei 11 anos fazendo esse ritual de pintar as sapatilhas, até que, em 2019, entrei em contato com um fabricante, perguntando se eles não poderiam produzir um par no tom da minha pele. Eles toparam! Demorou um ano, mas elas ficaram prontas! Foi emocionante a sensação de dever cumprido, de viver na pele a diversidade no mundo da dança.

Mas eu ainda não considero uma super vitória, porque a sapatilha é feita sob medida. Orgulho mesmo, vai ser no dia que eu tiver a minha própria marca. E que as pessoas possam ir até a loja comprar uma sapatilha da cor da sua pele. Aí sim, vai ser um grande marco. 


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Em 2020, um par de sapatilhas que eu pintava virou peça de museu. Elas estão expostas no Museu Nacional da Arte Africana Smithsonian, nos Estados Unidos. É uma instituição extremamente importante pra história do povo negro americano. Foi um passo importante pra inclusão da dança nessa mudança de mentalidade que a gente tá vivendo. Mas ainda temos um longo caminho pela frente. 


São poucas, mas muito poucas mesmo, as pessoas que entenderam o significado da pluralidade dos corpos, gêneros e cores no mundo do clássico. Várias meninas negras já me contaram que, quando falaram pro professor de balé que queriam ser bailarinas clássicas, ouviam: “Você não quer fazer aula de dança contemporânea? Jazz? Hip hop?”. Como se o clássico não servisse pra elas.

Muitas obras do balé foram criadas há muito tempo, são antigas mesmo, mas as pessoas que dançam mudaram. O mundo mudou. Ver essas narrativas em corpos diferentes é fazer essa arte evoluir.


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Se eu não tivesse vindo pra Dance Theatre of Harlem, onde existe diversidade, talvez eu não teria conquistado uma carreira profissional. Normalmente as companhias de dança só tem 2 ou 3 bailarinos negros entre seus 40 bailarinos! Para mudar essa realidade, eu fundei com Ruan Galdino e o Fábio Mariano, dois colegas de profissão no Brasil, o Blacks in Ballet, um movimento pra dar destaque a bailarinos negros e contar as suas histórias.

A plataforma tem uma biblioteca digital e oferece workshops e bolsas de estudo. Tudo isso para gerar oportunidades pra essas pessoas em companhias profissionais. O nosso grande sonho é um dia realizar o maior festival de dança de bailarinos negros do mundo. Nós queremos mostrar que existem muitos bailarinos negros super talentosos tendo sucesso em companhias de dança importantes e internacionais. Nenhuma ação é pequena quando se trata de mudar o mundo. 


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Nilton Bonder: No esforço de lapidar o seu corpo para a excelência da arte do balé, Ingrid modela e aprimora também a sua consciência. E este despertar para um corpo maior, um corpo que não é apenas o físico, mas o corpo percebido no espaço social e cultural, lhe oferece a oportunidade não apenas de uma coreografia no palco, mas na vida. Esta nova consciência permitirá que tudo que em seu corpo parecia ser uma deficiência, uma imperfeição nos padrões do balé, se tornem um ativo, uma potência nova. 


Nossa lição maior é sobre acreditar em si mesmo. Esse é o conselho inicial que põe em andamento sua carreira. A inadequação de não configurar os padrões de corpo e pele, precisa ouvir “sai da linha de trás e vem pra frente”. E o encolhimento de não corresponder ao biotipo esperado, precisava ouvir “levanta a cabeça e se impõe”. Ir pra frente ao invés de esconder o bumbum e as curvas resultou no empoderamento de sua graça, levantar a cabeça ou invés de se envergonhar do cabelo e da pele, a investe de sua beleza.

Habilitada de sua graça e beleza, se abrem não só os caminhos do sucesso, mas da autenticidade. Essa é a chave para não só abrir caminhos para si, mas para todos os outros bailarinos, que seja por cor de pele, especificidade física, ou qualquer outra convenção que não esteja vinculada à própria arte, tenham maior oportunidade. 
Ingrid lutando por si, acabou lutando por todos. O seu progresso não é apenas o de sua biografia, mas é o progresso do mundo. A lição é clara, saber encontrar o corpo, o seu sujeito autêntico, permite dançar a vida. 


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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.


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