Para Inspirar

Mariam Chami em "O islã é um modo de viver"

Na décima segunda temporada do Podcast Plenae, conheça um pouco mais sobre o islamismo com Mariam Chami.

25 de Junho de 2023



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:


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Mariam Chami: Mais de 90% dos meus seguidores não são muçulmanos. Pode ser que algumas pessoas até me sigam por gostar do meu estilo. Mas, acredito que a maioria me acompanha pra desconstruir as percepções erradas que elas têm sobre o islã. Se o islamismo fosse tão ruim assim, não seria a religião que mais cresce no mundo. 

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Geyze Diniz: Mariam Chami, mesmo sofrendo preconceito, nunca teve dúvida de sua fé e de praticar os valores de sua religião: o islã. Depois de algumas frustrações ao procurar trabalho na área de nutrição, que foi a sua formação na faculdade, ela se encontrou ao se tornar influenciadora e compartilhar o seu dia a dia, quebrando os estereótipos das mulheres muçulmanas. Conheça essa história de empoderamento e respeito de Mariam. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

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Mariam Chami: As meninas muçulmanas cobrem a cabeça com um lenço a partir da primeira menstruação. É um marco, como se a partir dali ela não fosse mais criança. Apesar do hijab ser obrigatório, as pessoas têm o livre arbítrio para usá-lo ou não. Ninguém pode obrigar a usar, tem que ser uma decisão individual, a partir de uma ligação da pessoa com Deus. As consequências de não uso serão divinas e não mundanas. Não adianta colocar o hijab só pra agradar os outros. Tem que ser uma escolha sincera. 

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Eu lembro exatamente da minha menarca, que é a primeira menstruação. Eu tinha uns 14 anos. O meu pai me acordou às 5h da manhã, pra fazer a primeira oração do dia. Eu fui no banheiro me lavar e fazer o ritual de purificação, e aí quando eu vi: sangue. Eu fiquei triste. Não por ter que colocar o hijab. Eu estudava numa escola muçulmana e já usava o hijab pra ir ao colégio, por escolha própria. Eu fiquei triste porque não queria deixar de ser a menininha do papai. E por vergonha das pessoas saberem que, agora, eu não era mais criança.

O teste foi logo no dia seguinte. O meu vizinho, que também era da nossa religião, tocou a campainha lá em casa. Eu o vi no olho mágico e pensei: “O que que eu faço!? Se eu atender com o hijab, ele vai saber que eu fiquei menstruada. Se eu atender sem, considero que estarei pecando”. Esse dilema demorou, sei lá, uns 30 segundos na minha cabeça e eu decidi abrir a porta sem o lenço. Mas eu fiquei tão arrependida, tão arrependida, que a partir daquele momento, eu comecei a usar o véu.

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Eu nasci no Brasil. E durante a minha infância, crescer num país onde a minha religião é minoria não fez nenhuma diferença pra mim. O choque entre o estilo de vida de muçulmanos e não-muçulmanos começa na adolescência. No islã, é proibido ter qualquer tipo de contato físico antes do casamento. Não pode nem pegar na mão. Outra diferença marcante entre as culturas é em relação às drogas. Todas as drogas, inclusive o álcool, são um pecado grave na religião.

Mas eu nunca me rebelei. É claro que já passou na minha cabeça: “Qual é a sensação de tomar uma bebida alcoólica?”. Só que eu nunca tive a vontade a ponto de quebrar os meus ideais para experimentar um gole. Eu sempre tive muita convicção na minha fé. E pra mim não faz sentido seguir uma coisa e não praticá-la. O islã não é uma religião em que você faz uma oração e pronto. É um modo de viver. Ele tá na maneira de como eu trato meu vizinho, como que eu falo com uma pessoa na rua, como eu tomo banho, como eu trabalho. A religião tá 100% presente no meu dia. 

[trilha sonora]

Eu percebi que eu era diferente dos outros pra valer quando entrei na faculdade.

[trilha sonora]

Eu estudei nutrição. Na universidade inteira só tinha eu e mais uma muçulmana. E eu era a única que usava hijab. Ali eu senti que eu era a minoria da minoria da minoria. Eu lembro que nos primeiros dias de aula ninguém falou comigo. Eu percebia uns olhares estranhos e eu entendo que exista uma curiosidade. Mas, eu diferencio o preconceito, que é baseado no desconhecimento, e a discriminação. Uma coisa é a pessoa pensar: “Por que que ela tá vestida assim?” E a outra eram piadinhas que eu cheguei a ouvir nos corredores, tipo: “Olha a mulher bomba! Bum!”

Num primeiro momento, eu fiquei tímida e me fechei. Mas, aos poucos, eu fui me soltando e fiz amizades no curso. Eu era o destaque na turma no estágio que participei. Na policlínica da faculdade, eu tive a oportunidade de atender pacientes e amei. Depois, eu estagiei num hospital e adorei a experiência também.

A nutricionista-chefe gostou tanto de mim, que me convidou pra trabalhar lá. Ela falou o meu salário e disse que eu já estava praticamente contratada. Só que precisava fazer uma entrevista no RH. Eu fiquei tão feliz... Seria a primeira vez que eu receberia um salário. Só que, na conversa do RH, me fizeram perguntas totalmente desconexas. Tipo: “Por que você usa lenço? A sua mãe usa também?” Eu saí da entrevista e pensei: “Eles não vão me chamar”. E eu lembro que eu cheguei em casa e comentei com a minha mãe: “Por que será que perguntaram isso?”

Eles prometeram uma resposta no dia seguinte. Eu esperei e nada. Esperei mais um pouco e mandei um e-mail pra nutricionista-chefe. Ela respondeu explicando que o RH tinha me considerado uma pessoa muito séria para o cargo. Eu não entendi nada. Meu Deus do céu, uma nutricionista de hospital não tem que ter uma postura séria?

Eu já tinha ouvido falar sobre intolerância religiosa. E eu já estava acostumada com piadas, o que também é uma manifestação de intolerância religiosa. Mas, nunca imaginei que eu pudesse ser reprovada numa entrevista de emprego por preconceito. Achava que comigo nunca aconteceria esse tipo de coisa. Se parar pra pensar, as pessoas deveriam adorar contratar muçulmanos. Pela religião, é obrigatório ser honesto e íntegro. E quem não quer um colaborador assim?!

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Eu passei um ano tentando conseguir um trabalho. Tentei a área de controle de qualidade e o cara que me entrevistou disse que eu não ia dar certo naquela empresa. Eu fiz uma sociedade com as minhas amigas da faculdade, mas também não rolou. Foram tantas frustrações, que eu perdi o interesse pela profissão que eu amava. Perdi também a confiança em mim. Eu pensava: “Por que que todo mundo tem um dom e eu não?” 

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Eu foquei no trabalho no restaurante dos meus pais. E depois de uns 4 anos conheci o meu marido, o Mahmmud, mais conhecido como Mozi. Eu brinco que o nosso casamento foi arranjado pelo Mark Zuckerberg, porque a gente se conheceu através do Facebook. As pessoas acham que os casamentos muçulmanos são arranjados, no sentido de serem forçados.

Mas não, inclusive é proibido pela lei islâmica obrigar uma pessoa a se casar. Não vou dizer que não acontece, que nunca aconteceu. O mundo é tão grande, com pessoas tão loucas, mas pela religião tanto o homem quanto a mulher devem escolher o seu cônjuge. O que acontece muito no islamismo é alguém fazer o papel de cupido. No meu caso, foi a irmã do meu marido.

Eu tinha criado um grupo no Facebook chamado Muslim Girls Brazil pra dividir o meu conhecimento sobre o islã. Por eu sempre ter tido uma educação religiosa dentro de casa e na escola, eu tinha mais informações do que outras pessoas. A minha cunhada me viu nesse grupo e enviou um pedido de amizade. Um dia, ela me mandou uma mensagem, dizendo que o irmão dela estava interessado em mim. Eu vi a foto dele e respondi que topava conversar.

Nessa fase de aproximação, o casal nunca pode ficar sozinho. Se vai num restaurante, por exemplo, tem que levar uma vela junto. Eu sei que pra cultura brasileira parece ser coisa de louco. Só que pra gente é normal. Primeiro, você conhece o que tem na cabeça da pessoa, o que ela quer pro futuro, quais são as características dela. Só depois do casamento vocês podem se tocar, se beijar, se abraçar.


Muita gente deve pensar: “Mas e se o beijo não encaixar depois?”. Eu acredito que, quando você gosta da pessoa e ela é boa pra você, o beijo vai dar certo. E, se não der no começo, vocês vão aprender juntos, com o diálogo. No islã, a base do relacionamento é a conversa. E eu acho que, quando você conhece a essência do outro, é mais fácil o relacionamento dar certo depois. É claro que pode dar errado também. Por isso, o divórcio é permitido na religião. Ninguém é obrigado a ficar dentro de um relacionamento ruim sofrendo não.

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Oito meses depois do primeiro contato com o meu marido a gente se casou. Nós passamos a lua de mel na Turquia. Eu achei muito legal saber que em um país muçulmano as mulheres também podiam escolher entre usar ou não o hijab, ao contrário do que muita gente pensa. Eu adoro usar o hijab, mas entendo que cada um tem a liberdade de escolher o que é melhor pra si. Isso, pra mim, é feminismo.

Eu acho que, se a mulher quer usar o hijab, tá ótimo. Se ela quer usar burca, tá ótimo. E se ela não quer usar nada, tá ótimo também. No islã, todo mundo tem o livre arbítrio de fazer as suas escolhas. Decisões de família e governos conservadores não têm nada a ver com a religião.

Muitas pessoas criam uma ideia errada, por acharem que o islã se limita ao Afeganistão, ao Irã, ao Iraque. Só que, o que torna as regras tão rígidas nesses lugares não é a religião, mas sim a política, o machismo e o poder. No Irã, por exemplo, onde as mulheres estão protestando, a luta delas é contra o sistema opressor, não contra o hijab em si. As pessoas precisam entender que o Islamismo não é um país. A maior parte dos muçulmanos sequer são árabes.

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Eu vivia explicando essas coisas pras pessoas na rua. Por causa da minha roupa, não passava um dia sem alguém me fazer uma pergunta, na farmácia, no mercado, na loja. Tipo: “Você toma banho de lenço?”. Ou coisas mais absurdas: “Você é mulher bomba?”. Aí eu pensei: “Cara, se eu tô falando na rua um para um, não é mais fácil falar na internet, que vai atingir mais pessoas?”.

Eu comecei a fazer posts nas minhas redes sociais de uma maneira muito despretensiosa. Quanto mais eu imprimia a minha personalidade, mais as pessoas foram gostando dos meus conteúdos. E aí eu me dei conta que era legal ser eu. A minha autoestima cresceu e eu fui me empoderando. No meu perfil, eu mostro que as mulheres muçulmanas podem se divertir, podem estudar, podem trabalhar. Mostro que, pela religião, elas não são oprimidas nem submissas. 


Mesmo eu falando tudo isso, muita gente me dizia: “Ah, mas é fácil ser muçulmana no Brasil. Quero ver lá fora. As mulheres não podem nem dirigir”. Aí, meu marido, que é muito parceiro, me deu uma ideia: “Por que você não viaja pra países muçulmanos e mostra a realidade das mulheres de lá?”.

Assim nasceu o projeto Mariam pelo Mundo. Eu fui pra Turquia, Líbano, Catar, Jordânia, Palestina e Egito. Três desses países eu conheci com o meu marido. Pros outros eu fui com as minhas amigas, justamente para quebrar mais um preconceito de que as mulheres muçulmanas não podem fazer nada sem um homem do lado.

Nessas viagens, eu mostro que, na verdade, é muito mais fácil ser muçulmana num país muçulmano, porque as mulheres não precisam quebrar preconceitos. O meu objetivo é passar a mensagem de que as escolhas das pessoas devem ser respeitadas. Ninguém é obrigado a concordar nem fazer igual, mas todo mundo tem que se respeitar.

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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.

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Para Inspirar

Carolina Farani em "Eu venci a guerra que eu travava contra mim mesma”

Inspire-se com o episódio de Mente da décima oitava temporada do Podcast Plenae - Histórias para Refletir!

1 de Dezembro de 2024



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

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Carolina Farani: Quando eu vejo meninas com transtornos alimentares, a minha vontade é de falar que tem uma luz no fim do túnel. Ainda bem que os padrões de beleza tão mudando, mas a pressão social pela magreza ainda existe com muita força. E essa pressão quase acabou comigo. Eu vi a morte de perto, porque o meu objetivo era emagrecer até morrer.
 

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Geyze Diniz: Carolina Farani desenvolveu transtornos alimentares na adolescência que foram desencadeados pelo bullying que sofria na escola. O tratamento foi longo, mas Carolina conseguiu com o apoio da família e acompanhamento médico recuperar não só sua saúde, como sua identidade, sua autoestima e a vontade de sonhar. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

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Carolina Farani: Eu me mudei de Salvador pra Santos, no litoral de São Paulo, com 12 anos. Quando meu pai me contou que tinha recebido uma proposta de trabalho, eu senti medo e euforia. Era um mix de sentimentos, de querer e ao mesmo tempo de não querer ir pra outro estado. Por um lado, eu sabia que ia sentir saudades das minhas amigas. Mas por outro, era legal a ideia de conhecer um lugar diferente e fazer novas amizades.

Só que no primeiro dia de aula eu já percebi que não ia ser fácil me enturmar. Assim que eu abri a boca pra falar o meu nome, eu senti o preconceito. Carolina. Mas como eu falava na época: ‘Carolina’. Em quatro sílabas, meus colegas perceberam que eu era nordestina. Naquela época, começo dos anos 2000, ninguém falava em bullying, muito menos em xenofobia. Eu nem fazia ideia que essas palavras existiam. Mas descobri na pele o significado delas.

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Eu não podia abrir a boca, que alguém imitava o meu sotaque. Se falavam comigo, era tipo assim: “Ôxe, mainha”, “Vixe, mainha”. Eu nunca nem chamei minha mãe assim. Mas, pros alunos da classe, isso não tinha a menor importância. Era tanta perseguição, que eu comecei a tentar mudar o jeito de falar, treinando em casa olhando pro espelho. Não adiantou nada. A turma pegou implicância comigo e eu fui acusada de roubar uma prova que sumiu. Até o professor acreditou nesse boato, um absurdo.

Daí inventaram que eu tinha um caso com um moço que trabalhava na escola. O motivo: ele era nordestino. Ele era o rapaz da cantina que vendia o lanche. Mas, de repente, ele virou o meu namorado. A fake news foi tão pesada, que a psicóloga da escola me aconselhou a parar de frequentar a lanchonete. Um tempo depois, este moço foi demitido. Não sei exatamente por quê.

Meu irmão, que é dois anos mais velho do que eu, também passava pelo mesmo processo de adaptação na escola de forma nada agradável. Ele se isolou, e demonstrou estar estressado e meus pais focaram em ajudá-lo. Eu, por outro lado, percebendo a preocupação deles, não quis amolá-los com o que eu sentia. Portanto, me fechei, e comecei a descontar a tristeza na comida. Ganhei em torno de vinte quilos a mais. Ou seja, além da minha origem, passaram a implicar com o meu corpo e com a maneira que eu me vestia.

Eu comecei a ter muita vergonha de falar em sala, minhas notas despencaram e começaram a me chamar de ignorante. O ataque agora era falar que todo nordestino é burro. Chegou a um ponto em que eu não tinha mais identidade. O meu apelido na turma passou a ser Ana ou Aninha, de baiana, baianinha. Percebendo que eu era minoria e queria tanto pertencer ao grupo, que eu aceitei ser chamada assim. Mesmo odiando.

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Quando eu completei 18 anos, eu fiz uma cirurgia de redução das mamas, já que por conta do meu sobrepeso eu tinha muita dor nas costas. Na consulta pré-operatória, o médico falou assim: “Olha, eu vou ser bem franco com você. Você tem que emagrecer e tem que fazer ginástica, porque desse jeito o seu fígado vai virar uma pasta”. A partir disso, comecei a me preocupar com minha aparência e saúde.

Eu entrei na academia e comecei a excluir alguns alimentos da minha dieta. Era tipo assim: feijão dá gases, então tira o feijão. Arroz tem calorias, então corta o arroz. Depois tirei o pão, a carne, o leite, as frutas. E assim foi até chegar ao extremo de passar cinco dias sem comer nada, só bebendo litros e litros de água. Ao mesmo tempo, eu passava horas e horas na academia, com um plástico filme enrolado na barriga, pra queimar mais gordura.

Coincidiu que, nessa época, eu acabei o Ensino Médio e entrei na faculdade de propaganda e marketing. A minha vida melhorou um pouco, porque pelo menos eu parei de ser perseguida. Eu tinha me tornado uma pessoa retraída, cheia de traumas, mas consegui fazer amizades com um grupo de 9 meninas.

Só que nessa mesma época, os traumas que ficaram dentro de mim, emergiram, trazendo a questão do ser aceita em um grupo. Eu encarei aquilo como uma nova oportunidade de se refazer, porém eu não sabia lidar direito com as pessoas – por conta das coisas que eu sofri. Foi no segundo ano de universidade que se via uma modificação notória em minha aparência.

Minha pele era amarelada e meu cabelo começou a cair e ficar ralo. Com 21 anos, eu cheguei a pesar 32 quilos. Mesmo assim, eu tinha uma imagem distorcida e me enxergava gorda no espelho. Frequentava lojas de roupas infantis, porque as de adulto não cabiam em mim. Teve um dia que eu coloquei uma saia e uma das colegas percebendo minhas pernas muito finas, falou o seguinte: “Carol, você não tá muito magrinha, não?”.

Eu neguei, disse que estava bem. Mas era mentira. Eu estava mal para caramba. Eu sentia tanta tontura que às vezes eu saia da aula porque não conseguia raciocinar. Eu cheguei a me perder no caminho da faculdade pra casa, por causa da confusão mental. Teve um dia que as meninas combinaram um café da manhã na república de uma delas, mas eu não fui. Eu menti que me atrasei e só encontrei as meninas na aula.

Quando eu cheguei na faculdade, uma delas, a Priscila, me falou: “Eu guardei um pedaço de bolo que eu fiz especialmente pra você, Carol”. Aí ela me deu o tupperware na frente de todo mundo. Eu agradeci, guardei o pote na mochila e fui pro banheiro. As 9 meninas foram atrás de mim e me prensaram naquele cubículo, perguntando porque eu não comia. A Fernanda, que era a mais esquentada, falou na lata: “Qual o seu problema, Carol? Você tá magra demais, não come nada. Você tem alguma doença?”.

 Eu comecei a chorar e, pela primeira vez, falei que precisava de ajuda. Eu expliquei que eu não sabia por que eu estava comendo tão pouco. Contei que me achava gorda, que me sentia sempre cansada e que pensava em suicídio. As meninas me aconselharam a falar a verdade pros meus pais, mas eu não falei nada.

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Eu estava tão magra, que não tinha força pra andar direito. Eu me lembro que uma vez fui pra um restaurante com a minha família e me apoiei nos meus pais pra conseguir caminhar, tipo uma bengala humana. Quando a gente entrou no restaurante, todo mundo olhou pra gente. Meus pais ficaram super incomodados e meu irmão começou a gritar com uma família que estava sentada numa mesa. Só anos depois eu descobri o que tinha acontecido. Alguém dessa mesa aí comentou que eu tinha AIDS.

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A primeira pessoa a nomear a minha doença foi uma professora da academia.

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Um dia ela me perguntou se eu estava me alimentando. Eu respondi que estava um pouco inchada. Aí ela falou: “Você se acha inchada?”. Eu respondi assim: “É, preciso emagrecer alguns quilos a mais”. Nesse mesmo dia, ela ligou pra minha mãe e falou que eu tinha anorexia.

Eu estava assistindo TV, quando a minha mãe entrou no meu quarto muito brava perguntando: “Você tá doente!? O que que você tem?!”. Ela ficou horrorizada com o telefonema da professora e me proibiu de frequentar a academia. A maior indignação era com ela mesma, por ser médica e não ter percebido o que estava acontecendo comigo.

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A minha mãe me levou num psiquiatra especializado em transtorno alimentar. Depois dessa primeira consulta ela se ligou que a doença era grave e cuidou de mim durante o tratamento. Ela diminuiu o ritmo de trabalho pra poder fazer refeições comigo, um hábito que a gente não tinha mais. A reintrodução alimentar foi muito difícil. No começo, quando eu tentava comer, passava mal e vomitava. Daí a nutróloga me ensinou a comer de pouquinho. Uma colher de chá de arroz no almoço. Uma lasquinha de bife.

A nutróloga me explicou assim: “Sabe as crianças desnutridas da Somália? Você sabia que não pode colocar alimento de uma vez que elas podem até morrer? Então, não se sinta culpada se você não conseguir. Eu só quero que você tente e me conte sobre tudo que você fizer. O negócio é tentar, Carol”.

O tratamento incluía duas sessões por semana com uma psicóloga, mas no começo eu não falava nada. Eu só fui começar a me soltar quando a psicóloga encontrou um jeito de se comunicar comigo: pela escrita. Eu contei que gostava de escrever quando era criança e daí ela me deu um caderno. Ela pediu pra eu escrever tudo que se passava pela minha cabeça. Nos momentos em que eu tivesse mais desesperada, era pra desabafar o que eu estava sentindo. Foi só nessa fase que eu comecei a elaborar o estrago causado pelo preconceito na escola.

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Depois de dois anos de tratamento, dando passos de formiguinha, meu irmão veio pra Santos e me convidou pra almoçar no shopping com minha mãe. A gente foi a um restaurante por quilo e eu pedi um prato feito, que tinha arroz, brócolis e carne. Eu lembro que, quando coloquei o brócolis na boca, senti um gosto delicioso e a minha pupila até dilatou. O meu irmão ficou tão emocionado de me ver comer que levantou da mesa e foi pro banheiro chorar de felicidade. A gente até deu risada quando ele falou: “Eu não acredito que eu tô chorando porque você comeu um brócolis”.

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Esse dia foi muito marcante pra mim. Foi uma prova pra mim mesma de que eu era capaz de comer. Quando eu voltei a me alimentar, eu não recuperei só o peso e a saúde. Eu recuperei também a minha identidade e a vontade de sonhar. A minha mãe viu que eu estava pesquisando sobre a Austrália e me ofereceu um intercâmbio de um ano pra lá. Eu saí do Brasil com o aval do psiquiatra.

Ele me deu alta, mas me fez um alerta enfático quando me perguntou assim: “Você sabe que é uma doença crônica?”. Eu disse que não, daí ele me explicou: “Se você sofrer algum gatilho, o transtorno alimentar pode voltar”. Eu tive alguns momentos de compulsão e de bulimia na Austrália. Mas eu não deixei a coisa desandar e não cheguei nem perto de ficar tão magra e tão doente como eu fiquei em Santos.

É que eu tinha ganhado ferramentas e autoconhecimento pra lidar com a minha condição. Depois que eu voltei pro Brasil, não tive mais recaídas. Nem mesmo durante a gravidez. Hoje, eu tenho 39 anos e sigo uma alimentação equilibrada. Pensamentos viciosos sobre o meu corpo não me atormentam mais. As minhas preocupações agora são com a minha filha.

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Quando eu olho pra trás, eu sinto gratidão pelas pessoas que me apoiaram e por cada pequena conquista que tive ao longo do caminho. O processo foi doloroso, mas me fez renascer mais forte. Eu aprendi que a minha batalha não era apenas contra a balança ou a comida, mas por um amor próprio que eu precisava redescobrir. Esse amor me permitiu recuperar o brilho nos olhos, o prazer de compartilhar uma refeição e a coragem de ser quem sou. Mais do que vencer um transtorno alimentar, eu venci a guerra que eu travava contra mim mesma.

Hoje, eu não busco um corpo perfeito, mas uma vida equilibrada e feliz, em que me sinta bem na minha própria pele. Quando eu olho para minha filha, eu vejo que todo o esforço valeu a pena – por mim e por ela. Eu quero que ela cresça com a certeza de que o valor dela não está em um número, mas na pessoa que ela é. E se minha história puder iluminar o caminho de outras pessoas, então eu vou ter cumprido a minha missão. Porque a verdadeira cura é viver sem medo, com amor e aceitação.

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Geyze Diniz
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