Para Inspirar

Luciane Zaimoski em "A maior dor de uma mãe"

Conheça a história de uma mãe que transformou o luto em luta, na décima quarta temporada do Podcast Plenae.

12 de Novembro de 2023



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora] 

Luciane Zaimoski: Eu não achava que depressão era frescura. Então quando o meu filho recebeu esse diagnóstico, eu entendi que era uma doença que precisava de tratamento. Mas, mesmo assim, na minha cabeça, se o Samuel se esforçasse um pouco, ele resolveria esse problema.

Se ele saísse de casa pra passear, por exemplo, ficaria melhor. Foi só na primeira tentativa de suicídio do meu filho, que eu entendi
, de verdade, que melhorar da depressão não é uma questão de força de vontade. 
 

[trilha sonora] 

Geyze Diniz: Desde que recebeu o diagnóstico de depressão de seu filho, Luciane Zaimoski se dedicou a cuidar dele e a entender mais sobre a doença. Infelizmente seu esforço não evitou que Samuel tirasse sua própria vida, mas Luciane transformou sua dor em uma causa pessoal e hoje, ajuda pessoas para que elas não passem pelo que ela passou. Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. 
 
 

[trilha sonora] 

Luciane Zaimoski: Eu tenho três filhos: a Carol, o Samuel e o Tiago. O do meio, foi planejado. Foi tipo: O pai do Samuel e eu olhamos no calendário e falamos: é agora! 

[trilha sonora] 

Desde pequenininho, o Samuel se destacou tanto em casa como na escola. Ele era muito inteligente. No primeiro ano dele na creche, ele desenhava tão bem e aprendia tão rápido, que as professoras falavam assim: “Nossa, quando ele for pra educação infantil, vai ter que fazer uma avaliação. Ele provavelmente vai passar na frente das outras crianças”. Elas achavam que ele era superdotado. Dali pra frente, o Samuel sempre foi considerado o melhor aluno da sala. 

[trilha sonora] 

O Samuel tinha alguns amigos mais chegados, mas não fazia o tipo popular. Ele era mais introvertido e isso se acentuou a partir dos 15 anos. Naquela idade em que os jovens começam a sair, namorar, festinha, ele fez o movimento inverso. Ficou mais caseiro do que já era. Eu estranhei, mas achei que fosse pelo jeito tímido dele. O Samuel era doce, sensível… E fechado.  

[trilha sonora] 

No ensino médio, pela primeira vez, as notas dele começaram a cair. Os desenhos do Samuel se tornaram sombrios. É como se ele tivesse deixado de desenhar o sol pra desenhar a escuridão. Ele passou a não dormir, a não tomar banho, a não ter energia para ir para escola. Eu fui várias vezes ao colégio, mas ninguém notou nada anormal no comportamento dele.

Cheguei até a ouvir de uma professora que
o meu filho fazia parte da geração mimimi. Ela disse que ele não precisava de psicóloga, e sim de trabalhar, já que ele não queria estudar. Eu não concordei com ela. Tinha alguma coisa estranha. 
 

Chegou um momento que eu falei: “Filho, eu acho que você precisa de ajuda. Vamos procurar uma psicóloga?” Ele concordou.

Eu participei de algumas sessões da terapia e questionei a mudança de comportamento do Samuel. Mas a psicóloga dizia que nunca tinha notado nada anormal. Ela falava: “Se eu perceber que ele
está correndo algum risco, eu te conto. Mas, fica tranquila, porque tá tudo dentro do esperado pra idade dele”.
 

[trilha sonora] 

Com a terapia, o Samuel começou a conversar mais comigo. A gente falava sobre sexo, sobre droga e sobre outros assuntos considerados tabu. Mesmo assim, era um papo mais superficial, eu diria. Meu filho nunca me contou sobre as angústias que ele sentia de verdade. Por que ele andava tão triste?  

[trilha sonora] 

Depois de um ano e oito meses, ele não quis mais continuar com a terapia. A psicóloga achou que ele estava bem e deu alta. Só que aí veio a pandemia e o Samuel piorou muito. Ele começou a se mutilar e a se queimar. Eu desconfiei quando vi ele de calça e blusa num dia muito quente. Fui conversar com ele de maneira tranquila, sem que parecesse cobrança ou briga. Eu perguntava: “Tem alguma coisa errada aí, né, meu filho? Vamos conversar?” Daí ele me mostrava as cicatrizes.
 
 

Ele passou a ter crises de ansiedade também. As primeiras causavam uma sensação de falta de ar. Daí ele começou a ter espasmos, como se fossem ataques epiléticos. Eu procurei um neurologista e o Samuel fez uma bateria de exames. Só que os resultados deram todos normais. O meu filho foi encaminhado pra um psiquiatra e com provável diagnóstico de depressão 

[trilha sonora] 

Uns dias depois que o Samuel iniciou o tratamento com antidepressivo, ele tentou tirar a própria vida. Ele tinha acabado de começar a estudar na faculdade e a trabalhar na prefeitura de Curitiba. Foi no emprego que ele se machucou. O meu filho foi levado pra uma unidade de atendimento médico e, de lá, transferido pra um hospital psiquiátrico.
 
 

Eu fiquei sem chão. Eu era muito ignorante sobre a depressão. Não tinha nenhum caso anterior na família. E eu nunca tinha convivido com alguém que tivesse a doença. Nunca tinha nem sequer lido a respeito. Foi a partir da tentativa de suicídio do Samuel, que eu comecei a estudar sobre o assunto.  

[trilha sonora] 

Antes, eu achava que se o meu filho tivesse amigos alegres, se fosse à igreja comigo, se saísse mais, ele resolveria o problema dele. Eu não sabia que a doença causava um sofrimento tão profundo na pessoa. O meu filho ficou 48 dias internado no hospital psiquiátrico. No começo, o Samuel também concordou com a internação. Eu me enchi de esperança nesse período.

Achei que ele sairia curado. Mas foi o contrário. Depois de uns 20 dias, meu filho só chorava durante as visitas. 
O psiquiatra do hospital me explicou que, na realidade, o Samuel tinha transtorno bipolar. Até hoje, eu não tenho certeza sobre o verdadeiro diagnóstico.  

[trilha sonora] 

Dentro da clínica, o meu filho, que era um doce de pessoa, se tornou agressivo. Ele se revoltava com o tratamento e chegou a ser amarrado. Depois que ele saiu da clínica, me contou os horrores que ele viveu lá dentro. Ele não dormia, porque tinha medo de ser atacado por pacientes com registros criminais. Eu praticamente larguei o trabalho pra me dedicar ao meu filho. Eu dormia com ele, às vezes segurando a sua mão, pra que ele não fizesse nada contra a própria vida.  

[trilha sonora] 

Quando fez um mês que ele estava em casa, ele pediu pra voltar pro trabalho e pra faculdade. Ele realmente parecia melhor. A gente chegou até a comentar que o antidepressivo estava fazendo efeito. Mal eu sabia que a felicidade era porque ele tinha descoberto uma forma de encerrar a dor absurda que ele sentia.

No dia 2
2 de agosto de 2022, eu ainda lembro da última vez que ouvi a voz do Samuel: “Tchau mãe. indo trabalhar. Te amo”. Algumas horas depois, eu recebi uma ligação com alguém dizendo que ele tinha se machucado no trabalho
. Quando eu cheguei lá, não me deixaram ver o Samuel.

Um enfermeiro me falou: “Mãe, faz 37 minutos que a gente tá tentando reanimar o seu filho”. A minha vista sumiu. Eu perdi o chão e desmaiei. De repente, acordei com alguém me chamando: “Lu, Lu, vamo
s, o Samuel voltou. Ele tá indo pro hospital”.
 Os batimentos cardíacos tinham voltado, mas a atividade no cérebro, não.

Três dias depois, um médico me chamou numa sala, junto com toda a família, e deu o diagnóstico de morte cerebral. Eu sou uma mulher de fé e até o último minuto eu acreditei que um milagre traria o meu filho de volta. Mas o milagre que eu esperei veio de outra forma. 
 

[trilha sonora] 

No momento em que eu recebi a notícia da morte do meu filho, alguém recebeu uma ligação para receber vida. Nós doamos todos os órgãos possíveis do Samuel. Com isso, algumas pessoas receberam a esperança de viver. Mais de 500 pessoas foram ao velório e ao enterro. Eu fazia questão de contar pra todas, principalmente pros jovens, a verdade, para que de repente essa tragédia não acontecesse de novo.

Um amigo dele me contou que o Samuel já tinha tentado tirar a própria vida pelo menos mais uma vez. E eu nem tinha ficado sabendo.
 Um dia depois do enterro, algumas pessoas vieram na minha casa. A gente estava numa roda de conversa e eu falei: “Quantas mães ainda vão chorar por um filho que cometeu suicídio? Quantas pessoas ainda vão tirar a própria vida por falta de informação? E se a gente criasse uma ONG que alcançasse pessoas com depressão e os familiares dessas pessoas?”.

Assim, nasceu o Instituto Samuel Caetano.
 Logo depois que o Samuel foi enterrado, começou a campanha do Setembro Amarelo, dedicada à prevenção do suicídio. A Câmara Municipal de Colombo, uma cidade perto de Curitiba, estava fazendo um evento sobre isso. Eu fui convidada pra ir e dei o meu depoimento. 

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Depois desse evento, a notícia se espalhou e pessoas que eu nem conhecia começaram a me procurar. A gente criou um grupo no WhatsApp e o projeto do instituto foi crescendo. Eu comecei a virar referência pros outros. Era assim: “Lu, uma amiga minha acabou de perder a filha e precisa de ajuda”. Ou: “Fulano tá com depressão”.

E assim eu fui fortalecendo outras mães e ajudando jovens com a doença. O suicídio acontece não porque a pessoa quer tirar a própria vida. Na realidade, é uma saída pra uma dor que a pessoa suporta mais sentir.
 

[trilha sonora] 

Atualmente, o Instituto Samuel Caetano tem cerca de 51 voluntários que prestam atendimento gratuito pra quem precisa. A gente faz ações em praças, pistas de skate, parques, ruas. Fazemos um trabalho de acolhimento para quem precisa, desde um abraço até uma conversa individual. 

Eu dedico a maior parte do meu tempo ao instituto, sem ganhar nada por isso. Nós temos dois projetos em andamento. O Projeto Girassol atua no ambiente escolar, da educação infantil até a universidade. Recentemente, nós demos palestra sobre saúde mental pra 800 alunos de uma escola na periferia de Curitiba. Já o Projeto Life, que ainda está em fase de discussão, prevê apresentação de música, teatro, dança.

A ideia é ter um cantinho da conversa, onde especialistas acolhem e encaminham pra tratamento se houver necessidade. Tudo de forma gratuita.
 O Instituto Samuel Caetano ainda não possui espaço físico. Mas eu sonho com uma sede espaçosa para acolher e tratar os pacientes de forma humanizada. Seria um lugar mais parecido com uma casa do que uma clínica. Quem tá doente precisa receber escuta sem julgamento, uma coisa que muita gente não encontra na própria família.  

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Na minha experiência de dor, nasceu a vontade de ajudar o próximo com amor. O Samuel se foi, mas a vida continua. Eu tenho tantos outros filhos pra cuidar. A Carol, o Tiago e tantos filhos e filhas que nasceram de outras mães e que necessitam de acolhimento. O nosso mundo precisa de pessoas dispostas a doar alegria e esperança ao próximo. 

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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae. 

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Para Inspirar

Paula Pfeifer em "​​Eu sou uma surda que ouve"

Desmistificando a deficiência auditiva por meio de seus textos e de sua própria existência, Paula prova de que não há limitações quando se tem um objetivo.

4 de Dezembro de 2022



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

 

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Paula Pfeifer: Eu sou surda. Só de ouvir essa frase, talvez você já se pergunte: “Como assim, surda, se ela fala tão bem?”. É que graças à medicina e à tecnologia, eu sou uma surda que ouve. Pode parecer coisa de ficção científica, mas não é. Quando as pessoas escutam as palavras “surdez” ou “surdo”, elas automaticamente associam à língua de sinais, intérprete de libras, surdos que não falam. Só que eu e milhões de pessoas no mundo inteiro somos surdos oralizados. Pessoas com algum grau de surdez que falam, que leem lábios e que usam próteses auditivas para voltar ao mundo dos sons.

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Geyze Diniz: Aos 6 anos de idade, a escritora Paula Pfeifer começou a perceber um ruído estranho em seu ouvido, mas só aos 16 que ela recebeu o diagnóstico que tinha surdez severa, bilateral e progressiva. Após alguns anos escondendo sua deficiência auditiva até de si mesma, foi na faculdade que ela revelou seu segredo e saiu do armário da surdez. De lá pra cá, Paula se dedica a criar conteúdo sobre surdez e tecnologia para disseminar informação de qualidade sobre o tema.

 

Ouça no final do episódio as reflexões do Historiador Leandro Karnal para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

 

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Paula Pfeifer: Eu devia ter uns 6 anos de idade quando percebi um ruído estranho no meu ouvido. O apartamento em que a gente morava, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, tinha um corredor em formato de “S”, onde eu adorava correr. Numa tarde, eu encostei a cabeça na parede e gritei: “Mãe, tem um apito no meu ouvido!”. A minha memória mais antiga da surdez ainda é nítida, mesmo que tenha passado quase 35 anos.

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Eu lembro do olhar intrigado da minha tia-avó, toda vez que eu repetia a palavrinha mágica das pessoas que não escutam direito: “Hã?”. Pra ela, eu falava “hã?” demais. Às vezes, ela comentava com a minha mãe e a minha avó que desconfiava que eu não ouvia bem. As duas sempre retrucavam: “Imagina, que bobagem!”. Como eu tinha a voz perfeita, ouvia muita coisa e conversava normalmente, era mais fácil pensar que eu era distraída. E, nos anos 80, não havia toda essa informação facilmente disponível hoje.

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Fiz uma audiometria e a fonoaudióloga deixou claro que eu tinha uma perda auditiva, mas minha mãe não lidou bem com a notícia e disse à fono que ela estava enganada. Só posso explicar de uma forma: é a clássica negação. Quando a surdez se manifesta na infância, nem todos os pais lidam com isso da melhor maneira. Embora a surdez seja considerada uma urgência quando acomete as crianças, muitas famílias levam anos até buscar reabilitação auditiva, sem saber o quanto estão prejudicando os seus pequenos. Afinal, tudo é comunicação, e a saúde auditiva é fundamental para o nosso pleno desenvolvimento.
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Fui levada a um otorrino que disse que o canal do meu ouvido se abriria conforme eu crescesse. E que daí ficaria tudo bem porque eu passaria a ouvir melhor. A gente acreditou nesse diagnóstico médico errado, e eu fui me virando com leitura labial. Na escola, eu procurava sempre um lugar estratégico para me sentar. Na época, meu ouvido bom era o direito. Então, eu sentava na fileira lateral e encostava a cabeça na parede, pra ter uma visão panorâmica da sala de aula e “ouvir” com os olhos.

A coisa se complicou na adolescência. Conversar no telefone com as amigas e namoradinhos era um pesadelo. Eu não entendia nada do que eles diziam. Para não passar vergonha, eu pedia para quem atendesse o telefonema dizer que eu não estava em casa. 

No segundo ano do ensino médio, eu fiquei muito amiga de uma menina que era surda oralizada. Ela tinha a voz bem diferente, mas dava para entender direitinho o que ela falava. A gente conversava tanto durante a aula que os professores colocaram cada uma numa ponta da classe. Só que a gente continuava conversando, sem som, somente com leitura labial.

Um dia, um colega me perguntou: “Como é que você consegue entender o que ela fala sem som?”. Aquela pergunta me intrigou tanto, que eu cheguei em casa e falei para a minha mãe: “Até hoje aquele canal que o médico disse que ia abrir não abriu. Vamos procurar outro especialista?”. E assim nós fomos a outro otorrino. 

Eu tinha 16 anos quando finalmente recebi o diagnóstico certo. Eu nunca vou esquecer o movimento dos lábios do médico quando ele me falou: “Você tem deficiência auditiva neurossensorial, bilateral, de caráter severo e progressivo”. Como em muitos casos, a minha surdez é de causa desconhecida. Mas a causa não importava muito. O mais difícil era pensar que, em breve, eu precisaria lidar com a chegada do silêncio total. Meu mundo caiu? Não. Em vez de pensar em mim, eu pensei nos outros. 

[trilha sonora]

Como seria se alguém soubesse desse fato ao meu respeito? Como seria a reação das pessoas? Será que eu seria vítima de piadinhas e de capacitismo? Quando a minha mãe e eu saímos do consultório, ela estava com o rosto inchado de tanto chorar. Enquanto a gente esperava o elevador, eu disse a ela: “Esquece isso que ouvimos aqui. E nunca mais toque nesse assunto comigo”. Olhando para trás, eu vejo que foi uma atitude infantil de uma adolescente apavorada. A palavra “deficiência” não fazia parte do meu mundo. Em termos práticos, o diagnóstico não mudou muita coisa no meu dia a dia. Eu usei poucas vezes o aparelho auditivo caríssimo que a fono recomendou, porque eu tinha vergonha de usar e entrei para o armário da surdez, tentando esconder a minha deficiência auditiva até de mim mesma.

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Eu me formei no ensino médio e fiquei muito agoniada na hora de escolher uma profissão. Eu tinha vontade de estudar jornalismo ou direito. Mas como, se eu tinha dificuldade para ouvir e para me comunicar? Eu acabei prestando vestibular para o curso de ciências sociais, mesmo sem vocação, e a escolha estava intimamente ligada ao fato de que esse curso não requeria muita interação humana e eu poderia passar bastante tempo com a cabeça enterrada em livros.


A faculdade me tirou da minha zona de conforto. Eram novos amigos, novos professores, novas vozes e novas bocas pra decifrar. Eu ganhei fama de antipática, porque eu não respondia quando os colegas me cumprimentavam. Um dia, na aula de antropologia, a professora me chamou e eu não ouvi. Mas eu li os lábios dela dizendo pra classe inteira que eu era mal-educada. Eu chamei a professora e falei bem alto, pra todo mundo ouvir: “Eu não respondi porque eu não escutei. Eu não sou mal-educada, eu sou surda”. 

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Todo mundo me olhou com os olhos arregalados, e a professora ficou com as bochechas coradas de vergonha. No intervalo, alguns colegas vieram me dizer que se sentiam aliviados em saber que eu não era metida como eles achavam. Esse episódio é muito marcante pra mim. Foi a primeira vez que eu verbalizei alguma coisa a respeito da minha deficiência. Como eu vivia no armário da surdez desde que recebi o diagnóstico, eu achava que, se revelasse o meu segredo, as pessoas ficariam horrorizadas ou algo semelhante. E na verdade elas pouco se importaram. 

[trilha sonora]

A partir daí, eu comecei a me assumir como surda e a me interessar pelo tema. No último ano da faculdade, eu prestei um concurso público na Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul. Pela primeira vez, eu tive que lidar com a palavra “deficiente” no meu dia a dia. Eu concorri a uma vaga reservada a pessoas com deficiência, no início das cotas para PCDs em concursos públicos. Eu passei no concurso e, no primeiro dia de trabalho, um colega foi apresentar os três recém nomeados aos outros funcionários. E disse assim: “Esse aqui é o Giovano, esse aqui é o Cristiano e essa é a deficiente”. Eu nunca tinha ouvido falar na palavra capacitismo, eu nem sabia o que era isso. Mas o preconceito já estava ali, escancarado. 

[trilha sonora]

Alguns meses depois, um colega, muito observador, começou a questionar a minha teimosia em não usar aparelhos auditivos. Ele passou muito tempo insistindo, e eu lembro de um dia em que ele me disse: “Paula, não é possível que tu não te acertes com teus aparelhos auditivos. Deixa de frescura, porque até a minha tia de 80 anos se acertou com os dela e ganhou muita qualidade de vida”. Ele tinha razão. E foi assim que eu dei um basta em todas as desculpas esfarrapadas que contava pra mim mesma tentando justificar porque os meus aparelhos estavam na gaveta ao invés de estarem nos meus ouvidos.

[trilha sonora]

A partir daí, eu nunca mais deixei de usar os meus aparelhos auditivos. Sair do armário da surdez me tornou mais leve. Eu gastava muita energia fingindo que era uma pessoa que ouvia e fingindo que entendia o que as pessoas estavam falando. Uma cena clássica da surdez é ficar só sorrindo e concordando numa roda de conversa, sem ter a menor ideia do que os outros estão dizendo. Aí você concorda e reza para que não seja uma pergunta. Assumir a surdez me deu liberdade pra eu falar: “Eu não ouvi, você pode repetir?”. 

O tempo foi passando e eu fui perdendo a pouca audição que eu tinha. A surdez tem graus: leve, moderado, severo, profundo. Eu conheci e experimentei todos esses graus. E quando eu cheguei na surdez profunda, a sensação era de viver trancada num aquário. Sem aparelho, eu só escutava estouros, portas batendo, trovão alto e um zumbido constante. Eu era prisioneira do silêncio. E ainda por cima tinha o zumbido como carcereiro, o tempo todo me lembrando: “Eu tô aqui, eu tô aqui”. Eu queria muito sair daquela prisão, mas não via a menor possibilidade de como fazer isso acontecer.

[trilha sonora]

Em 2010, decidi criar o site Crônicas da Surdez e passei a escrever sobre os perrengues que eu passava no dia a dia. Era quase uma terapia, porque eu não tinha com quem conversar sobre a minha deficiência auditiva. 

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A audiência foi crescendo aos poucos cada vez mais e, a partir daí, um monte de coisas legais aconteceram, entre elas um convite pra fazer a minha primeira palestra num congresso de otorrinolaringologia, que aconteceu em Campos do Jordão. Depois da palestra, saímos com um grupo de 10 fonoaudiólogas para jantar. Apesar de ser expert em leitura labial desde pequenininha, naquele dia, ter que ler o lábio de várias pessoas num ambiente escuro e super barulhento foi impossível. Era a surdez, mais uma vez me afastando das pessoas. 

A minha mãe tirou uma foto minha dormindo na ponta da mesa. Quando ela me mostrou, eu ri, todo mundo riu. Mas eu fui pro banheiro chorar, porque essa foto me mostrava claramente que eu tinha chegado no fundo do poço. Enquanto todo mundo se divertia e conversava, eu dormia, porque não conseguia acompanhar as conversas. E foi aí que eu decidi investigar se podia fazer um implante coclear. Esse implante é um dispositivo de altíssima tecnologia indicado nos casos de surdez severa ou profunda. Eu descobri que sim, eu tinha indicação médica para fazer a cirurgia do ouvido biônico. A foto foi tirada no dia 16 de agosto de 2013. No dia 28 de setembro, eu entrava no hospital para operar o meu ouvido direito. E a partir daí, a minha vida mudou. 

[trilha sonora]

O meu sonho era poder escutar uma música e entender a letra sem leitura labial. Algumas semanas após a cirurgia, eu estava sentada em cima da minha cama, sem prestar atenção na TV, e começou a tocar a música de abertura de uma novela das 8. E era “Eu sei que vou te amar”. Quando aquela música entrou pelo meu ouvido e fez sentido, o meu corpo arrepiou inteiro. Eu estava ouvindo uma música e entendendo a letra inteirinha pela primeira vez.
Aos 31 anos, eu voltei a ouvir as vozes dos meus amores. Da minha mãe, da minha vó, do meu irmão. Eu voltei a ouvir e a controlar a minha própria voz, porque eu não tinha como saber antes se eu estava gritando ou falando baixinho. Quando eu ouvi passarinhos pela primeira vez, depois de tantos e tantos anos, foi emocionante. O dia em que eu fui até a praia para descobrir se eu tinha voltado a ouvir o mar, que eu tanto amava, e sim, eu tinha, eu não tenho nem palavras para descrever o que eu senti.

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Quando eu voltei a ouvir com o ouvido biônico, percebi que estava no trabalho errado, na cidade errada. E aí eu pensei: “Bom, agora que eu consigo fazer o que eu quiser, o que que eu quero fazer?”. A vida foi abrindo os caminhos. Por uma sucessão de coincidências, por causa do meu primeiro livro, eu conheci o meu marido, que é otorrino, especializado em surdez e em implante coclear. Um ano depois, pedi demissão, me mudei pro Rio de Janeiro, me casei e me tornei madrasta de três crianças.

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O foco do meu trabalho, desde então, é a criação de conteúdo sobre surdez e tecnologias auditivas. Criei uma comunidade que hoje tem 22 mil membros. Em 2018, venci um programa global de liderança do Facebook como residente da América Latina. Foram mais de 6.500 inscritos no mundo inteiro. Esse programa nos deu acesso a fundo de 1 milhão de dólares pra criar e executar um projeto em prol da nossa comunidade. O projeto se chamou Surdos que Ouvem e foi um sucesso. Milhões de pessoas assistiram a nossa campanha em vídeo. Milhares participaram dos nossos eventos. E incontáveis pessoas passaram a usar aparelhos auditivos ou fizeram implante coclear depois de conhecer o nosso trabalho.

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Segundo a Organização Mundial de Saúde divulgou no Relatório Mundial da Audição de 2021, há 1 bilhão e 500 milhões de pessoas com algum grau de perda auditiva hoje no mundo. A nossa missão é disseminar informação de qualidade para que todos saibam os caminhos possíveis para quem nasce com algum grau de deficiência auditiva ou para quem passa a perder a audição ao longo dos anos. A audição é o único sentido humano capaz de ser recuperado artificialmente. Reabilitação auditiva e tecnologia são sinônimo de qualidade de vida: ouvindo melhor, você para de se isolar, de sentir medo das interações sociais e se sente mais seguro para correr atrás dos seus sonhos. 

Outro tema muito importante nesse universo é a acessibilidade, que precisa ser uma luta coletiva, porque ninguém está livre de vir a ter uma deficiência em qualquer momento da vida. Hoje, todos nós temos um celular na palma da mão e consumimos muito conteúdo em vídeo. As legendas são essenciais. Há pouco tempo, o IBGE apresentou os dados da Pesquisa Nacional de Saúde, feita em 2019, e eles mostram que a maioria das pessoas com algum grau de surdez no Brasil não usa Língua de Sinais. Mas nós precisamos pensar em todas as pessoas surdas sempre, e a acessibilidade total para surdos envolve legendas e intérprete de Libras.

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Quando eu comecei a compartilhar as minhas dores e conquistas, eu entendi o poder da autoaceitação, o poder de vencer o medo na direção da mudança. E, com essa mudança, entendi que podia inspirar muitas pessoas a escutarem o barulho de dentro e mudarem as suas próprias vidas.

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Leandro Karnal: História tocante da Paula Pfeifer. Primeiro ela tem que lutar com um problema: surdez progressiva. Ela tem que descobrir até na negação da mãe do primeiro diagnóstico o que fazer diante de uma realidade, que segundo o dado que ela mesma fornece, mais de 1,5 bilhão de pessoas no mundo tem algum tipo de deficiência auditiva. Depois, o que ela mostra, que ela consegue lutar, construir sua história, fazer um concurso e enfrentar o capacitismo, o preconceito das pessoas contra alguma limitação de outra pessoa. Mas, o mais interessante da história não é só nos revelar o que todos sabemos: que o mundo é tomado de preconceitos, que as pessoas julgam a partir de modelos de perfeição. Mas que ela própria teve que superar alguns preconceitos, como a resistência dela a um aparelho e insistir em não usar um aparelho quando ela poderia e ela conseguiu melhorar a sua qualidade de vida através do uso da tecnologia. O preconceito estava no mundo e de alguma forma, ela mesma teve que trabalhar nela a questão da surdez e os desafios que isto pode representar para alguém. O que é bonito na história é que ela se transformou em uma pessoa que luta pra visibilidade, pra diminuição do preconceito, para poder não ser de novo apresentada como a deficiente do grupo, ou seja, que ela tenha identidade, que ela seja a Paula Pfeifer antes ser qualquer outra característica. Então ela conseguiu superar muitas questões, conseguiu superar muitos preconceitos externos e internos e fazer da sua característica específica uma alavanca, um foco que ajuda tanta gente no trabalho que ela faz. Parabéns, Paula.


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