Para Inspirar

Francilma Everton em "A educação transforma"

Inspire-se com o episódio de Contexto da décima oitava temporada do Podcast Plenae - Histórias para Refletir!

1 de Dezembro de 2024



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora]
 

Francilma
Everton:
Como jovem negra e periférica, eu não tinha um projeto de vida nem perspectiva de futuro. O meu sonho era terminar o Ensino Médio, conseguir um emprego de vendedora de loja com carteira assinada. O meu destino só mudou porque a diretora da escola onde eu estudava começou a falar com a gente sobre vestibular e faculdade. Era um universo novo pra mim.

 

[trilha sonora] 

Geyze Diniz: Francilma Everton percebeu desde cedo a importância da educação para prosperar na vida. Sua determinação e dedicação a fizeram se tornar professora e hoje ela inspira os jovens da sua comunidade através do seu exemplo e do reconhecimento. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. 

[trilha sonora] 

Francilma Everton: Eu nasci e cresci no interior do Maranhão, numa cidade de 45 mil habitantes chamada São Bento. A minha família era tão pobre ques aos 2 anos de idade, eu quase morri de desnutrição. A minha mãe chegou até a encomendar um caixão pra mim. Eu tenho o gene da obesidade e, mesmo assim, tava pele e osso.
 

A nossa condição social e econômica não mudou depois disso. No interior do Maranhão não tinha emprego pros meus pais. Então, quando eu tinha 4 anos, eles se mudaram pra capital. Eu continuei morando com a minha avó, meus tios e meus primos. A minha avó ficava boa parte do dia vendendo lanche na rua. Ela teve 15 filhos, mas só 9 sobreviveram. Nenhum deles teve pai presente, ela criava os meninos sozinha.  

Quem cuidava de mim era a minha tia, sete anos mais velha que eu. Ela era responsável por me buscar e levar na escola e por participar das reuniões escolares. Eu, por outro lado, cuidava de uma tia que tem deficiência física e ajudava nos afazeres domésticos. Com 8 anos de idade, eu lavava a roupa de todo mundo em casa.  

[trilha sonora] 

Mesmo tendo essas responsabilidades, eu adorava estudar e sempre fui a melhor aluna da classe. Eu não faltava na escola nem quando tava doente. Aos 14 anos, fui morar com meus pais, fantasiando que a vida e a qualidade do ensino na capital seriam melhores. Mas em São Luís tudo era diferente. Meus pais moravam em uma área de ocupação na beira do mangue. Era um lugar sem água potável, sem saneamento básico e com muita violência. 

A minha mãe era dona de casa e meu pai se virava fazendo bicos. Quando o meu pai não tinha dinheiro, um irmão de criação dele, que trabalhava numa padaria, dava pra gente uns pães duros e mofados que tinham sobrado no dia. Fora isso, a gente só comia umas mangas que meu pai pegava em um terreno vizinho e tomava chá de capim-limão que minha mãe plantava no quintal.  

Estudar na cidade grande também foi mais complicado do que eu imaginei. Precisava de dinheiro para pagar o transporte público e me deslocar até o centro da cidade. Meus pais se esforçaram muito para que eu pudesse ir pra escola todos os dias, mas o ensino era muito ruim. Eu entrava às 7h20 e muitas vezes saía às 9h30 por falta de professor. 
 

[trilha sonora]

Eu teria parado de estudar no Ensino Médio, se não fosse pela diretora da escola, a Fátima. Ela vivia falando que a gente deveria sonhar em ser mais do que os nossos pais. Ela incentivava a gente a fazer faculdade, algo que nunca esteve no meu radar. Quando eu contei essa ideia
pra minha mãe, ela me apoiou e incentivou. 
Sempre que a diretora lançava uma informação nova, eu anotava no caderno e ia na lan house pesquisar. Eu pude me preparar pras provas com apostilas de cursinho que meu pai encontrou num lixão.


O meu pai tinha uma bicicleta que era o meio de transporte dele. Ele vivia rodando pela cidade à procura de emprego. No dia que ele achou esse monte de livros e apostilas de cursinho pré-vestibular, ele amarrou tudo na garupa da bicicleta e levou
pra mim. As apostilas vinham até com respostas e foram a minha mina de ouro. Eu lembro que estudei uma pergunta sobre a ECO-92, que depois caiu como tema da redação no vestibular. É curioso como na minha vida as coisas acontecem de uma maneira meio mágica.

[trilha sonora] 

Aos 17 anos, eu fui aprovada na Universidade Federal do Maranhão pra estudar Ciências Sociais. Eu nem sabia o que era ensinado nesse curso, muito menos qual seria minha profissão quando eu terminasse a faculdade. Eu só optei por esse curso porque era o único no turno da noite. Assim, eu poderia ter um emprego durante o dia pra me sustentar. Só que logo que o curso começou eu percebi que não ia dar certo conciliar estudo com trabalho.

Eu cheguei na faculdade com uma formação escolar fraca. E aí, eu achava as aulas muito difíceis. Os textos, então, eram mais incompreensíveis ainda. Eu me casei muito cedo, porque sou de família evangélica e o meu marido apoiou a minha decisão de só estudar. Ele tinha acabado de ser convocado
pra um concurso público no órgão de saneamento público do estado. Então ele conseguia bancar as contas de casa.
 

As minhas primeiras notas foram baixas, algo que nunca tinha me acontecido na vida. Pra piorar, eu era uma das poucas pessoas negras da turma e sentia as micro agressões da academia. O meu ano foi o primeiro a ter cotas, tanto pra estudantes de escola pública como para negros. O número de alunos por classe aumentou. Alguns professores chegavam com falas muito preconceituosas, tipo: “Agora a gente não consegue dar aula”. Eu estava ali adquirindo um direito, usufruindo desse direito, e sofrendo uma violência simbólica. 

[trilha sonora]
 


Mas esses episódios não tiraram meu foco. Eles me davam mais gás pra eu correr atrás do meu objetivo, que era estar entre os tops da classe. Pra conseguir chegar lá, eu comprei um gravador de mp3, comecei a gravar as aulas e fazia as tarefas domésticas ouvindo as gravações. A partir do 4º período, eu fui me destacando e conseguindo algumas bolsas. Uma delas era de iniciação científica em um grupo que estudava comunidades tradicionais. Eu ganhei bolsas pra aprender inglês e francês.  

Quando chegou o momento de estagiar, eu entrei em crise existencial, porque a professora que estava à frente da disciplina falou assim: “Galera, a gente com um problemão aqui. Não tem vaga pra vocês. Não tem nenhum sociólogo empregado em São Luís”. Foi um banho de água fria. Eu até fiz um curso técnico de administração à tarde, e pensei seriamente em mudar de carreira. 

Até que um dia o meu marido me contou sobre um concurso público pra professor de Ensino Médio do estado. Era o maior salário de carreira do Brasil. Eu disse que não tinha chance de passar, porque não estava estudando. Mas ele insistiu e botou o dinheiro em cima da mesa pra eu me inscrever. Eu fiz a prova sem muita expectativa, porque estava concorrendo com pessoas do Brasil inteiro. Era gente graduada, com mestrado e doutorado. Mas quando saiu o resultado, eu não acreditei que tinha sido aprovada. 

[trilha sonora] 

Desde 2018, eu dou aula numa das melhores escolas públicas do estado, o Instituto Estadual de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão. O prédio é lindíssimo, super moderno. E o melhor de tudo é que a escola fica no mesmo bairro onde passei minha adolescência. Eu conheço todos os moradores e alunos. Além de dar aulas de sociologia, eu comecei a orientar os trabalhos de conclusão de curso dos estudantes. Os meus colegas me questionavam: “Francilma, tu já fica o dia todo na escola. Por que tu vai procurar mais serviço?”. Eu falava: “Galera, é pro meu currículo. Eu quero crescer. Quero fazer meu nome”.  

Quando abria um edital da Fundação de Amparo à Pesquisa, eu submetia um projeto novo. Uma das pesquisas que eu fiz se chamava “Escola pra quê?”. Eu tive essa ideia depois que um menino no meu bairro, que era envolvido com o tráfico de drogas, me provocou, dizendo que ninguém conhecia aquela escola. Eu pensei: “Caramba, é verdade. A gente não conversa com os nossos vizinhos”.  

O projeto durou 12 meses e captou quase 20 mil reais, entre bolsas pros estudantes e verba pra pesquisa. A gente investigou por que alguns jovens iam à escola e outros não. Onde foi que esses meninos se perderam? Depois da pesquisa, eu sugeri pra diretora que a gente promovesse eventos que integrassem a comunidade. A gente promoveu recreação e curso de robótica pras crianças no fim de semana. No Dia da Família e da Saúde, tinha ações pros moradores do bairro.

No total, eu já captei quase 200 mil reais pra pesquisas e cursos de formação. Nesse montante, eu incluo uma pós-graduação que eu fiz na Universidade de Coimbra, em Portugal. Eu só tinha o diploma da graduação e concorri nessa vaga com doutores e pós-doutores. Mas o meu currículo lattes era extenso, graças aos projetos de TCC que eu orientei.

Em 2021, eu ganhei o Prêmio Servidor Pesquisador, que o governo do Maranhão oferece pra iniciativas que modernizam o serviço público. A nossa proposta foi juntar todas as áreas do saber da escola em aulas interdisciplinares. A ideia surgiu a partir de uma reclamação dos alunos.

Eles têm quase 20 disciplinas por semestre e já estudam em tempo integral. Se cada professor passa uma atividade
pra fazer em casa, o aluno não dá conta. Então, com a ajuda de uma pedagoga, a gente juntou as disciplinas pra diminuir a sobrecarga. E quando a gente tabelou os resultados, viu que era uma estratégia eficiente na educação.
 

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Por ter vivenciado tudo isso, prosperado e levado comigo muitos jovens, eu fui convidada pra dar uma palestra em Harvard em 2024. É um evento chamado Brazil Conference, organizado por brasileiros que estudam em Boston. Eu fui selecionada pra representar a educação brasileira num programa que visa valorizar servidores públicos que fazem a diferença no bem-estar da sociedade. Junto comigo tinha um gari, uma enfermeira, um agente do Ibama e uma policial civil. A nossa palestra foi mediada pelo doutor Drauzio Varella, num auditório lotado. Esse foi um dos dias mais felizes da minha vida e eu fiquei muito orgulhosa de contar como eu saí de São Bento pra chegar até ali.  

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A minha maior alegria é ver as vidas que eu ajudo a transformar pela educação e pelos projetos que eu lidero na escola. Eu lembro que quando eu tava na faculdade eu fiz um curso da associação de moradores do meu bairro focado em agricultura familiar. Era um projeto pra ensinar a criar peixe e galinha. Eu cheguei em casa e contei pro meu marido sobre a aula, toda animada. Ele ficou bravo: “Por que tu tá estudando criação de peixe em vez de terminar a faculdade?”. Eu não tinha nenhum objetivo concreto com aquele curso. Mas eu sou assim. Quero aprender tudo que é novo, mesmo que não tenha uma aplicação direta na minha vida. 

Os anos passaram e, quando cheguei na escola, recebi um aluno que veio do interior. Era um menino de 15 anos, mas parecia um senhor cheio de conhecimento sobre animais. Aí coincidiu de abrir um edital de pesquisa com o objetivo de gerar renda pra pessoas dos municípios com menor IDH do estado. Eu me lembrei daquele curso. Mostrei a apostila pro aluno e ele ficou super empolgado. Ele liderou o projeto, a gente viajou num grupo de uns 10 estudantes pro interior e implementou o programa sobre criação de animais. Esse aluno não fez faculdade, mas hoje é um fazendeiro de sucesso. 

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Eu sei que eu tenho uma trajetória improvável. Mas eu acho que o meu diferencial é que eu sempre acreditei em mim e tive muita vontade de crescer. Hoje, eu sou feliz no que eu faço. Sou feliz por ter estabilidade no meu serviço. Sou feliz por ser uma liderança. E sou feliz, principalmente, por saber que eu ajudo a construir um mundo com menos desigualdade e mais oportunidade. 

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Geyze
Diniz
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