Para Inspirar

Desmistificando conceitos: o que são os cuidados paliativos?

Essa linha de cuidado que reúne um conjunto de práticas que vão ter como objetivo fornecer qualidade de vida para os pacientes que mais precisam. Entenda mais!

24 de Novembro de 2023


No segundoepisódio da décima quarta temporada do Podcast Plenae, embarcamos no propósito de Fernando Korkes: usar os seus conhecimentos médicos para ajudar quem mais precisa no Sistema Único de Saúde. Isso, por si só, já seria incrível. Mas a proposta de Fernando é ainda mais específica: trazer essa ajuda de uma forma que faça sentido para o paciente, levando em consideração suas chances de cura e garantindo a dignidade e a qualidade de vida.

Esse olhar não foi adquirido por ele ao longo da formação. Korkes, assim como tantos outros profissionais da saúde, estudou a medicina tradicional, que abre pouco diálogo para o subjetivo e para o sentimental. Essa jornada teve início dentro dele a partir de uma situação específica em sua vida: o câncer que levou sua mãe. Ao longo do tratamento, Fernando viu de perto que tratar um indivíduo não significa tratar somente a sua doença. E que, na verdade, há tantas frentes para se olhar que muitas vezes a doença fica em segundo plano.

Ele viu de perto uma área que ainda caminha a passos curtos no Brasil, mas que promete avançar cada vez mais com firmeza e gentileza que deve ser: os cuidados paliativos. Hoje, falaremos desse termo e desse tipo de atenção que deveria ser regra e matéria obrigatória na graduação, mas que infelizmente ainda é cercado de tabus muito maiores e mais complexos.

A atenção final: os cuidados paliativos

Descrita pelos ingleses pela primeira vez nas décadas de 1950 e 1960, a intenção de uma morte digna, próximo de pessoas queridas e menos sofrida se tornou uma preocupação legítima e que se estendeu aos Estados Unidos da América e outros países da Europa, segundo este artigo científico.

Foi em 1947 que Cicely Saunders, personagem importantíssima para a jornada dos cuidados paliativos,
segundo Academia Nacional de CuidadosPaliativos - conheceu e acompanhou até a morte um paciente de 40 anos chamado David Tasma, vítima de um carcinoma retal inoperável.

A partir dessa experiência, a enfermeira, assistente social e médica dedicou sua vida ao sofrimento humano e em 1967, fundou o St. Christopher´s Hospice, o primeiro serviço – e até hoje o mais reconhecido - a oferecer cuidado integral ao paciente, dos sintomas e alívio da dor ao sofrimento psicológico.
  

Isso resultou na criação do modelo de cuidados integrais e mais humanizados, especificamente para pessoas com “doenças avançadas, progressivas e crônicas, sem possibilidade de tratamento modificador da doença”. Essa foi o primeiro passo para a construção de uma área que ganharia força nos anos seguintes, mas ainda não a força suficiente.

“O cuidado paliativo é uma linha de cuidado que reúne um conjunto de práticas que vão ter como objetivo fornecer qualidade de vida para os pacientes e familiares no contexto de uma doença grave e ameaçadora de vida. Esse cuidado vai ser feito principalmente através do alívio de sintomas, dor e sofrimento, oferecendo suporte e técnicas que buscarão ajudar o paciente a viver de uma forma mais ativa e funcional possível, até a finitude.”, explica Ana Carolina Stamm Fávero, psicóloga, especialista em Psicologia Hospitalar e Cuidados Paliativos.

Na jornada desse cuidado, respeitar os valores e histórico de vida daquele paciente é fundamental, pois trata-se de um cuidado que irá olhar para além da parte física. Isso não quer dizer que não seja importante o manejo das comorbidades e desconfortos físicos, é claro, mas nessa dinâmica, é preciso se manter sensível a questões emocionais, sociais e espirituais, como explica Ana.

“Estamos falando de um tratamento biopsicossocial e espiritual. Então é cuidar do paciente e seu entorno como centro do cuidado, trazendo assistência focada genuinamente no sujeito e não na doença em si”, diz. É isso que torna essa linha de cuidado tão importante: o olhar para o paciente de uma forma holística, com o objetivo de fornecer um cuidado pautado no bem-estar integral desde o diagnóstico de uma doença ameaçadora de vida, perdurando pelo acompanhamento e evolução dessa doença até o seu possível fim.

“Eu acredito que é por meio dessa abordagem que a gente afirma a vida e reconhecemos a morte como um processo natural. É uma abordagem que vai apoiar também as tomadas de decisões, possibilitando que elas ocorram de uma forma mais coerente a partir de orientações reais de todas as opções de cuidado que temos disponíveis. O alívio do sofrimento é o foco”, afirma.

Os caminhos do cuidado paliativo

No Brasil, a área ainda caminha a passos lentos. Em uma pesquisa divulgada pelaAcademia Nacional de Cuidados Paliativos, observou-se que menos de 10% dos hospitais brasileiros disponibilizam uma equipe de CP (cuidados paliativos). Para efeito de comparação, a cobertura dos EUA é de 75% dos hospitais norte-americanos. O mapeamento ainda evidenciou que mais de 50% dos serviços de CP do país iniciaram suas atividades na década de 2010, ou seja, é uma discussão extremamente recente e ainda elitizada - 50% dos serviços são concentrados na região sudeste e menos de 10% do total na região norte-nordeste.

“A questão do acesso é um ponto que precisa ser melhorado. É preciso expandir esse cuidado para áreas remotas e não falar sobre isso somente em grandes centros de saúde. Precisamos garantir de fato um acesso independentemente da localização geográfica, com mais recursos destinados, mais investimentos nessa área e sem excluir as áreas onde de fato a aplicação desse cuidado vai ser mais difícil, mas que não pode ser esquecida”, pontua Fávero.

Graças a figuras como Ana Claudia Quintana, médica especialista em cuidados paliativos e autora de “A morte é um dia que vale a pena viver”
– te contamos aqui sobre ele – o tema tem ganhado mais atenção. Em recente entrevista, ela abordou justamente essa questão da inacessibilidade de um atendimento tão importante, e revelou que apenas 0,3% dos pacientes que precisam de cuidados paliativos têm acesso e que, por conta disso, tantos pacientes com câncer, por exemplo, não morrem pela doença, mas sim, pela dor.

Ela também participou como uma das entrevistadas para o documentário “Quantos dias. Quantas noites”, projeto apoiado financeiramente pelo Plenae e que te contamos em detalhes por aqui e que gerou ainda essa matéria relacionada completa quefizemos para falar sobre esses anos que ganhamos na era da longevidade. Essa atenção que o assunto tem recebido é importante para trazer luz ao tema, que ainda sofre muitos mitos.

“Acho que o principal gargalo do cuidado paliativo hoje é fornecer orientações reais sobre o que é esse tipo de cuidado e desmistificar algumas coisas que são constantemente faladas a respeito dessa abordagem. Hoje eu vejo muito mais iniciativas e organizações trabalhando em prol dessas discussões, tornando mais real e mais acessível essas informações, então acredito que esteja melhorando”, comenta Ana Carolina.

Para ela, o fato de o assunto precisar ser desmitificado está relacionado a um outro problema bem comum em nosso país: o tabu com a morte. Mais de 73% dos brasileiros não gostam de falar sobre esse tema, segundo pesquisa encomendada pelo Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep) e realizada pelo Studio Ideias. Isso dificulta várias outras conversas importantes para se ter ainda em vida,
como debatemos neste artigo completo.

“Os cuidados paliativos tornam a questão da morte mais concreta e real, nos coloca frente a frente com sua possibilidade e por mais que a gente tenha a certeza da nossa finitude, a gente tenta afastar de todas as formas essa temática. Se perguntamos para as pessoas como elas acham que vão falecer, a maioria fala que gostariam de falecer de uma forma aguda do coração e em casa, mas é uma baixíssima parcela, quase irrisória, que vai morrer dessa forma. Então a partir do momento que idealizamos essa morte, não nos permitimos discutir como gostaríamos de ser cuidado. Porque se a gente acha que a gente vai morrer dormindo, a gente não precisa pensar sobre a forma que a gente quer ser cuidado”, reflete.

Onde, como e para quem?

Os cuidados paliativos, justamente por focarem em um atendimento mais personalizado e dissociado de protocolos rígidos e unificados, pode ser encontrado em diferentes lugares. Esse cuidado pode ser oferecido de diversas formas, configurações e locais, com técnicas e condutas adaptáveis, em prol de um melhor suporte para aquele paciente e sua família. “É literalmente sobre olhar para o sujeito e abrir mão de protocolos mais estruturados e fechados e ir adaptando as terapias conforme as necessidades dele”, explica Ana.

Eles são possíveis de serem oferecidos tanto em casa, com a assistência domiciliar, possibilitando que os familiares e cuidadores estejam mais próximos e presentes. Em casas de repousos e LPIs, em hospices - clínicas especializadas como a de Cicely Saunders. Atualmente, há setores inteiros e leitos destinados a isso em grandes hospitais e, em algumas regiões, é possível encontrar a abordagem até mesmo na atenção primária, através de programas comunitários.


Ainda, o cuidado paliativo é destinado para qualquer um que esteja enfrentando uma doença ameaçadora de vida, independentemente da fase dessa doença ou da idade do enfermo. Há, por exemplo, centros pediátricos dedicados a área. “Todo mundo deveria ser contemplado por esse atendimento desde o diagnóstico de uma doença ameaçadora de vida, pra já ir ponderando sobre o que de fato será benéfico para aquele indivíduo, sem em nenhuma etapa do cuidado submetê-lo a terapêuticas fúteis, que só vão expor aquele sujeito a um sofrimento sem uma melhora efetiva ou sem possibilidade de reversão daquela condição clínica”, reforça.

Por fim, mas não menos importante, é preciso capacitar alunos de todas as áreas da saúde sobre o tema. “Precisamos treinar profissionais para essa área que é extremamente delicada, que lida com uma etapa de muita fragilidade e demanda profissionais específicos”, pondera a psicóloga.

Para quem está pensando em mergulhar na área, seja como um estudante e futuro profissional ou apenas um curioso e até alguém que irá iniciar a jornada como acompanhante de um paciente paliativo, há alguns caminhos para se aprofundar. Livros, de blogs, por vídeos de organizações confiáveis e especializadas, conversas com especialistas da área e até grupos de apoios: tudo isso será válido e bem-vindo frente a um tema ainda tão mistificado e que, com esse artigo, esperamos ter desmitificado um pouco mais.

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Bella Santoyo em "A gente tem que viver o hoje como se fosse a vida inteira"

Conheça a história de como vidas que se cruzam mudam o curso de um destino, na décima quarta temporada do Podcast Plenae.

3 de Dezembro de 2023



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora] 


Bella Santoyo: Será que eu tava grávida? Eu fiz o teste da farmácia, mas deu negativo. Aí, eu chorei de alívio, de desespero e de tristeza. Tudo ao mesmo tempo. A minha irmã me perguntou: “Você queria tá grávida?” Eu falei: “Era o que eu mais queria. Mas eu não sonhei em ter um filho desse jeito. Então, eu vou deixar nas mãos de Deus”.  


[trilha sonora] 

 

Geyze Diniz: Bella Santoyo não vive no automático, mas nem sempre foi assim. A descoberta de uma gravidez alguns dias após a morte precoce do seu marido fez com que ela tivesse força para encarar seus medos, preconceitos e insatisfações. Hoje, Bella é coach, mãe da Estela e está casada novamente. Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. 


[trilha sonora] 

 

Bella Santoyo: Eu tinha 31 anos quando eu conheci o Eduardo. Era uma fase em que a minha carreira tava bombando. Eu era advogada de formação mas trabalhava como executiva na área de negócios de um banco grande. Eu já não amava o que eu fazia como antes, só que eu era muito bem sucedida.  


A realização profissional vinha por meio da grana naquele momento. Como eu sempre gostei de autoconhecimento, eu já me perguntava: o que eu vim fazer aqui, nessa vida? Será que o meu caminho é trabalhar em banco e ganhar dinheiro?  


Em vez de encarar essa crise de propósito de frente, eu achei que o que faltava na minha vida era uma relação amorosa bacana. Eu comecei a trabalhar essa questão com a minha terapeuta. E foi nessa época que apareceu o Edu, apresentado por uns amigos em comum, num churrasco.  


A gente se apaixonou de cara. O nosso primeiro beijo foi em dezembro. Em janeiro, ele se mudou pra minha casa.  


Eu era aquela pessoa que achava um absurdo casais que vão morar juntos sem nem se conhecer direito. Pensava que era coisa de gente desesperada. Bom, cuspi pra cima e caiu na testa.  


[trilha sonora] 


Quando eu comecei a namorar, achei que todos os meus problemas estavam resolvidos. Afinal de contas, tinha acabado de conhecer o homem da minha vida. Só que foi o contrário.  

 

O Edu era um dentista apaixonado pela profissão. Ele saía de casa feliz pra trabalhar. Eu tive que conviver com a vocação dele e, obrigatoriamente, refletir sobre a minha.  


Eu nem sequer escolhi ser advogada. Queria ter estudado teatro ou jornalismo. Mas o meu pai mandou: “Vai fazer direito e acabou”. E eu atendi os desejos do meu pai. E assim foi… 

 

O Edu me estimulava a mudar de vida. Ele esfregava as minhas qualidades na minha cara. Eu lembro que ele falava assim: “Gatinha, você é demais. Você é uma águia presa numa gaiola de rolinha nesse banco. Pelo amor de Deus! Suas amigas te amam, as pessoas te adoram, você tem magnetismo!”.  


O Edu era muito inteligente e tinha um olhar perspicaz sobre as pessoas. Eu me sinto uma mulher muito mais potente depois que ele entrou na minha vida.  


O Edu me incentivou a viver intensamente as coisas. Ele tinha uma certa urgência no viver e uma mentalidade abundante.  


Se a gente ia mergulhar, ele comprava o melhor equipamento de mergulho. Quando eu questionava aquela gastança, ele dizia que a gente tem que se tratar como um cavalo de raça. Uma vez, ele comprou um monte de roupa de esqui. Aí eu perguntei: Mas por que tanta roupa de esqui? 


- Por que a gente vai esquiar o mundo inteiro! 


Tudo nele era exagerado. Ele mesmo, fisicamente, era um exagero. O Edu foi atleta de rúgbi da seleção brasileira. Ele era largo, absurdamente forte. As camisetas ficavam esgarçadas no pescoço, porque eram pequenas pra ele.  


Seis meses depois que a gente foi morar junto, ele me surpreendeu com um pedido de casamento em Las Vegas. Ele levou até as alianças na viagem.  


No ano seguinte, a gente se casou em São Paulo, com uma festona pra 400 convidados. A gente era um casal apaixonado, daqueles que dava esperança pra quem não acreditava mais no amor. Parece que a gente sabia que o nosso prazo de validade juntos era curto.  

 

Quando a gente completou um ano de casamento, o Edu foi viajar com os amigos para ver o mundial de rúgbi na Nova Zelândia. Depois que ele voltou, eu tirei férias pra gente matar a saudade.  


Foi uma semana de amor. A gente andou de moto, tomou chuva no parque e comeu nos nossos restaurantes favoritos. Na semana seguinte, eu me arrastei pro trabalho e ele voltou feliz pro consultório. 


[trilha sonora] 


Nesse mesmo dia, o mundo tava desabando em cima da minha cabeça no banco, quando meu telefone tocou às 11 horas da manhã. Era o Edu, perguntando como eu tava, dizendo que me amava e me convidando pra ir ao cinema à noite. Eu respondi que também amava ele e me animei com a ideia de sair daquele martírio e ver um filme. 


Uma hora depois, o telefone tocou de novo. Dessa vez, era a secretaria do Edu, me contando que ele tinha passado mal, e que eu precisava correr até o consultório. Eu cheguei a tempo de encontrar o meu marido no chão, desacordado e babando.  


O Edu foi levado de ambulância pro hospital, mas não resistiu. Ele faleceu subitamente, de um AVC, aos 43 anos. O nosso primeiro beijo não chegou a completar três anos.  


[trilha sonora] 


Ninguém entendeu como uma pessoa jovem, saudável e sem nenhuma comorbidade morre assim. Foi um desses acontecimentos inexplicáveis da vida.  


Aos 34 anos, eu fiquei viúva do grande amor que eu tinha encontrado, no auge dos nossos planos e sonhos.  


[trilha sonora]  


Eu tirei uma licença do trabalho e mergulhei num luto profundo. Eu nunca tinha passado por nada parecido. Nunca tinha sentido uma sensação de angústia tão forte que me impedisse de enfrentar o dia.  


Quando o Edu se foi, eu me senti numa escuridão total. Eu tinha dores físicas.  


Eu, que costumo ser uma pessoa alegre e festeira, não sabia lidar com aquela tristeza. As pessoas oravam por mim. Minha irmã se mudou pra minha casa e algumas amigas se revezaram para ficar comigo.  


Mesmo assim, eu sentia uma sensação de solidão total. Eu tinha vergonha de chorar demais o tempo todo, como se eu não pudesse fazer aquilo. Então, eu tomava banhos demorados e chorava debaixo do chuveiro. Os banhos foram curativos pra mim.  


Eu pedi ajuda pra Deus e me lembrei de um texto que se chama Pegadas na Areia. Ele conta a história de um cara que caminha na praia com Jesus. Esse cara se sente sozinho e só enxerga um par de pegadas no chão. Quando ele pergunta porque foi abandonado, descobre que as pegadas eram de Jesus, que tava carregando ele no colo. E eu precisava do colo de Deus. Naquela hora, a fé me ajudou demais.  


Assim que a morte do Edu foi constatada, ainda no hospital, o psiquiatra da família perguntou se eu precisava de algum remédio pra lidar com aquele momento. Eu falei que nunca tinha tomado nada, nem saberia o que tomar. E aí ele me questionou: “Tem alguma chance de você estar grávida?” Eu respondi que não… mas que eu tinha tirado o DIU sete meses antes. Então, ele falou: “Vou te dar um fitoterápico”. Eu fiz um teste de farmácia pra tirar a dúvida, mas deu negativo. Mesmo assim, fiquei encasquetada com aquilo.  


Umas semanas depois, solicitei um pedido de exame de sangue pro meu pai, que era pediatra. Eu fiz o teste numa quinta-feira, na mesma semana em que eu voltei a trabalhar.  


Eu lembro que eu chorava no laboratório, enquanto tiravam meu sangue. O enfermeiro foi um querido e me falou pra eu ficar calma, e que o resultado sairia dali algumas horas.  


Eu fui pro banco e não contei pra ninguém. Mas aí uma funcionária minha, evangélica fervorosa, pediu pra falar comigo. Ela me disse assim: “Bella, eu tava orando ontem por você, de joelho no chão, com a Bíblia na mão. Deus profetizou nos meus ouvidos que você vai ser feliz no detalhe que você viveu com o Eduardo. Aquele detalhe que só você sabe. Você vai ser em dobro”. Eu comecei a chorar e contei pra ela sobre o exame.  


Às cinco horas da tarde, ela foi comigo pra um cantinho do andar e a gente entrou no site do laboratório. O teste deu positivo. E eu chorei de alegria.  


[trilha sonora] 


Liguei pro meu ginecologista, que eu fazia tempo que não via. Eu falei: “Doutor, tenho que falar duas coisas. A primeira é que o meu marido morreu. A segunda é que eu tô grávida”.  


[trilha sonora] 


Aí, eu peguei a minha bolsa e saí do banco, sem nem falar com o meu chefe. Fui direto pra casa dos meus pais e contei a novidade. Meu pai abriu uma garrafa de champanhe que tava quente pra gente brindar. Eu liguei pra minha sogra, e ela ficou paralisada com a notícia. 


Fazia 20 dias que o Edu tinha morrido. Nesses 20 dias, eu pensei em largar tudo e me mudar pra Nova York ou pra Londres ou ainda me enfiar num retiro qualquer. Mas aí a gravidez tirou com a mão a agonia do meu peito e o nó da minha garganta.  


Eu tinha disposição pra me levantar da cama, tomar banho e me alimentar. O meu organismo começou a reagir naturalmente a isso, com mais disposição pra viver. Era o corpo físico fortalecendo a mente e o coração. 


A gravidez foi super bem. Eu fazia os ultrassons acompanhada da minha família inteira: meu irmão, minha irmã e meus pais. Todo mundo marcava na agenda como um compromisso.  


Ainda assim, era estranho não ter o meu marido comigo. O meu olhar sempre focava nos casais. Eu lembro de um pré-natal que eu fiz no banco onde eu trabalhava e eu era a única mulher que não tinha marido. Quando as pessoas me perguntavam sobre o pai, ficavam assustadas ao ouvir a minha história.  


Era tão desconfortável pra mim, que eu chegava a mentir. Um vizinho do prédio certo dia me falou: “Faz tempo que eu não vejo seu marido”. E eu não tive coragem de contar a verdade e respondi: “Ele tá viajando”.  


Eu descobri que ser viúva é um estado civil cercado de tabu. Eu tive que quebrar o meu próprio preconceito pra encarar uma gravidez solo. 


No dia do parto, eu entrei no centro cirúrgico com o meu irmão e um amigo médico. Eu senti muita falta do meu marido nesse dia.  


[trilha sonora] 


A Estela nasceu com 4 quilos, super saudável, com uma pintinha no braço e uns olhões expressivos. Ela era a cara do pai. Todas as visitas ficavam surpresas com a semelhança física entre eles.  


A lembrancinha do nascimento foram cookies em formato de borboleta, porque, na missa de sétimo dia do Edu, uma borboleta ficou voando dentro da igreja. 


Eu me orientei com a psicóloga sobre como contar pra minha filha sobre o pai dela. Quando ela era bem pequenininha, eu falava que ele ficou dodói e virou estrelinha. Mas que ele desejou muito ela, que ele sonhava em ter uma filha de cabelo cacheado que ia se chamar Estela.  


[trilha sonora] 


Quando a Estela tinha 3 anos, eu comecei a namorar o Murilo, que hoje é o meu marido. Ele também é viúvo e a gente se conheceu por um amigo em comum. A Estela tinha cinco anos quando entrou com o Murilo na escola pela primeira vez. Eu lembro que ela arrastava ele pelo pátio, cheia de orgulho. Ela diz que o Murilo é pai do coração dela.  


[trilha sonora] 


Eu acredito na relação a dois. Acho muito difícil a gente ser feliz sozinho. O Edu foi a pessoa que me abriu pra capacidade de amar, de me dar valor como mulher e como pessoa. A morte dele me trouxe um senso de urgência. Eu senti que eu precisava ser feliz e realizada agora, não amanhã. Porque eu não sei se amanhã eu vou tá aqui. Eu não posso esperar muito tempo pra fazer a mudança que eu tanto sonho. Até porque, se a gente sonha demais, o desejo fica só no campo do ideal.  


Depois que o Edu morreu, eu fiz um trabalho de autoconhecimento intenso, que desencadeou em vários estudos sobre desenvolvimento humano. Eu me planejei financeiramente e tive coragem de pedir demissão do banco, pra abraçar a carreira de coaching.  


Nos últimos 11 anos, eu atendo pessoas e dou palestras. Dou cursos e workshops voltados para o desenvolvimento humano, pessoal e profissional. Eu sou muito realizada e sinto que o meu propósito é transformar vidas, assim como eu transformei a minha.  


Eu escrevi um livro sobre a minha história e quero lançá-lo em breve. A escrita foi um processo altamente curativo para mim. O livro vai ajudar a Estela a saber de onde ela veio, mas eu acho que a história pode ajudar outras pessoas também. 


Eu sempre gostei muito da vida, mas hoje eu coloco mais atenção nas pequenas coisas do dia a dia. Raramente eu caio no automático. Eu sinto a vida de uma maneira mais pulsante. Eu amo meu trabalho, eu amo a minha casa, amo a minha família e meu modo de viver. Eu sempre digo pros meus clientes: a gente tem que viver o hoje como se fosse a vida inteira. Eu quero viver bem para morrer bem. 


[trilha sonora] 


Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae


[trilha sonora]  

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