Para Inspirar

Como diferentes religiões abordam o luto?

A espiritualidade, que pode ser fundamental no processo de superação de um trauma como o luto, pode oferecer diferentes caminhos para a cura. Contamos alguns aqui!

19 de Abril de 2024


No terceiro episódio da décima quinta temporada do Podcast Plenae, conhecemos a história das irmãs Luciana e Marcella Tranchesi. Mais do que um relato de fé, é também um relato de superação do luto e como um episódio como a perda de um ente querido acaba mudando todos os caminhos seguintes da vida de quem passa por essa situação. 


Já abordamos por aqui as fases do luto e porque é importante vivê-las, além da importância também das relações ou como acolher uma viúva. Queremos agora falar desse mesmo tema, mas sob a ótica religiosa. Leia mais a seguir!


As diferentes religiões 


A palavra religião existe no dicionário da língua portuguesa aproximadamente desde o século XIII, mas sua origem ainda é cercada por dúvidas, como debatemos neste artigo. Há algumas hipóteses. A primeira delas - e provavelmente a mais aceita -, é a de que a palavra vem do latim religio, que significa “louvor e reverência aos deuses”, segundo o Dicionário Etimológico.


Ela é um conceito que define “um conjunto de crenças relacionadas com aquilo que a humanidade considera como sobrenatural, divino, sagrado e transcendental, bem como o conjunto de rituais e códigos morais que derivam dessas crenças”, ainda segundo o mesmo dicionário. 


São muitas religiões existentes no mundo - das mais clássicas às mais diferentes, como as que te contamos aqui -, cada uma com os seus ensinamentos, mas todas unidas por um mesmo propósito: garantir que exista um sentido maior e ideal para o qual você pode lutar, algo como dar um sentido coletivo, como te contamos neste artigo. 


Além disso, a fé traz conforto, uma muleta de apoio que pode ser muito importante em períodos difíceis do sujeito. O luto, como mencionamos no começo dessa matéria, pode ser um desses períodos. Mas elas têm abordagens variadas em relação a esse sofrimento para quem fica, influenciadas por suas crenças, tradições e ensinamentos específicos e que estão interligados ao que elas acreditam a respeito do pós-morte. 


Conheça as perspectivas principais de algumas das principais religiões sobre o assunto:

Cristianismo

Para os cristãos, a morte é a passagem para um lado de lá que envolve estar ou não ao lado de Deus - tudo vai depender das suas atitudes terrenas. O luto de quem fica, por sua vez, é visto como uma oportunidade para se conectar com Deus e encontrar consolo na fé.


A ressurreição de Jesus Cristo, seu messias, é central para a crença cristã, e muitos cristãos acreditam que aqueles que morrem em Cristo serão ressuscitados - ou seja, aqueles que morreram com fé e fora cristãos em vida, estarão sempre ao lado de Deus e, portanto, ao nosso lado também. 


As Igrejas cristãs oferecem apoio espiritual e conforto através da oração, dos sacramentos e da comunidade durante o período de luto. Ainda, há a tradição da missa de sétimo dia, um mês e até anuais, onde o enlutado pode colocar o nome do seu ente querido que partiu e receber homenagens, honrarias e um sermão específico para esse momento. 

Islamismo

Te contamos por aqui um pouco mais sobre o islamismo. No Islã, o luto é considerado uma parte natural da vida, e os muçulmanos - ou seja, praticantes da religião -, são incentivados a enfrentá-lo com paciência e submissão à vontade de Alá (Deus). 


O Alcorão, que é o livro sagrado dos seguidores do islamismo, e os ensinamentos do Profeta Muhammad oferecem orientação sobre como lidar com o luto. É comum realizar orações pelos falecidos, visitar túmulos e oferecer apoio prático e emocional aos enlutados.


A visão do Islamismo sobre a morte, segundo esse artigo, é moldada por várias crenças fundamentais como akhirah, termo em árabe para a vida após a morte. Em resumo, eles acreditam que a vida neste mundo é temporária e que a verdadeira vida começa após a morte. 


Sendo assim, os muçulmanos buscam viver sua vida de acordo com os ensinamentos do Islã de forma moral e piedosa, pois acreditam que haverá um Dia do Juízo em que todas as pessoas serão ressuscitadas e julgadas por suas ações. Isso inclui a prática das boas ações. Isso inclui a oração, a caridade (zakat), o jejum durante o Ramadã e a peregrinação a Meca (Hajj), entre outros atos de devoção.


Neste dia, ainda segundo eles, tanto as pessoas boas quanto as más serão pesadas, e Deus determinará seu destino eterno com base nisso, recompensando com o paraíso ou com a punição no inferno. Uma parte importante da visão islâmica sobre a morte é a aceitação da vontade de Deus. Para eles, esse dia é predeterminado por Alá e ninguém pode escapar do seu destino.


Isso traz um senso de aceitação maior como sendo algo que parte do plano divino. Seus rituais específicos para lidar com a morte e o sepultamento incluem lavagem do corpo por membros da comunidade muçulmana antes do enterro para purificá-lo; orações fúnebres realizadas na mesquita ou em um local designado; sepultamento o mais rápido possível após a morte, de preferência no mesmo dia; e túmulo é simples, sem adornos extravagantes, refletindo a ênfase do Islã na humildade.


Religiões de matrizes africanas


Te contamos por aqui um pouco mais sobre a diferença entre o Candomblé e a Umbanda, principais religiões de matriz africana. Mas em questão de luto, não há um consenso único sobre como seguir e ele é vivenciado de maneira individual e profundamente ligada às suas tradições e crenças específicas. 


No Candomblé, por exemplo, o luto pode envolver rituais específicos realizados pelos sacerdotes e membros da comunidade religiosa e pode incluir cantos, danças, oferendas e cerimônias destinadas a honrar o espírito do falecido e a auxiliá-lo em sua transição para o mundo espiritual. A comunidade também oferece um papel fundamental e muitas vezes se reúne para oferecer apoio emocional e espiritual à família enlutada.


Na Umbanda e em outras religiões afro-brasileiras, o luto também pode ser acompanhado de rituais e práticas específicas, como missas ou trabalhos espirituais realizados nos terreiros, buscando proporcionar conforto aos vivos e também aos espíritos dos falecidos.


Nessas religiões, o luto é visto como parte natural da vida e da jornada espiritual, e as práticas associadas a ele são destinadas a honrar os mortos, fortalecer os laços comunitários e oferecer consolo àqueles que estão sofrendo a perda.


Judaísmo


O Judaísmo, assim como outros dogmas, possui rituais e práticas específicas para o luto. A fé judaica ensina que a alma da pessoa falecida continua a existir após a morte e que o luto é uma maneira de honrar sua memória. Nas horas entre morte e enterro, conhecido como aninut, o enlutado por estar mais desolado pode ser isentado até mesmo de ter que ir em exigências religiosas. Depois, nos primeiros três dias de luto, a pessoa deve refletir sobre o que pode melhorar no seu comportamento. 


As pessoas ainda não podem saudar ou serem saudadas por um enlutado, como explica esse artigo. Se por engano o cumprimentam, ele deve responder: "Não posso responder ao cumprimento, pois estou de luto." As "proibições de trabalho" durante estes dias aplicam-se mesmo se os enlutados forem passíveis de sofrer perda financeira e até responsabilidades religiosas podem ser canceladas também. 


Durante este tempo, o enlutado fica dentro de casa, expressando sua dor ao usar uma roupa rasgada, sentando-se num banco baixo, usando chinelos, abstendo-se de barbear e arrumar-se, e recitando o Cadish (prece dos enlutados), como continua a explicação do Chabad.


E enfim chega o período de shivá, que dura sete dias após o funeral e inclui os três dias mencionados anteriormente. Nesse estágio, as visitas de apoio da comunidade são mais encorajadas e ele passa a falar mais sobre sua perda e aceitar consolo dos amigos e parentes.


Para os judeus, é uma obrigação mostrar compaixão por meio da visita de condolências. Isso é uma mitsvá, ou seja, uma ordem bíblica. O objetivo fundamental dessa visita durante a shivá é aliviar o enlutado do fardo intolerável da intensa solidão e começar a incluí-lo novamente na sociedade.


Por fim, passado o shivá, é chegado o sheloshim - um período de trinta dias mais intensos que abarcam o shivá. Barbear-se e cortar o cabelo geralmente é proibido, assim como cortar as unhas e lavar o corpo todo (é feita apenas uma limpeza necessária). Ainda não passou-se tempo suficiente para retomar suas obrigações sociais, mas a pessoa começa lentamente a voltar. 

O período de um ano - os 12 meses que se passaram desde a morte desse ente - é de retomada total da vida, com exceção das festividades coletivas ou pessoais, cuja ausência é uma forma de respeito do enlutado. No encerramento deste último estágio, espera-se que a pessoa continue seu luto apenas em breves momentos, como quando yizkor (prece especial recitada em memória aos entes falecidos) ou yahrtzeit (aniversário de morte do ente falecido) estão sendo cumpridos.


Budismo


Apesar de não se tratar de uma religião formal, e mais uma filosofia, como te explicamos aqui, o Budismo também tem seus ensinamentos para somar. Para eles, o luto é visto como uma oportunidade para refletir sobre a natureza impermanente da vida e praticar a compaixão e a aceitação.


Os budistas acreditam ainda na reencarnação - como os espíritas -, e a morte é portanto vista como parte de um ciclo contínuo e complexo de renascimento. As práticas budistas de luto podem incluir meditação, recitação de sutras e cerimônias de memória para o falecido.

Espiritismo


Para os espíritas, a morte é uma passagem para a verdadeira vida do espírito, como explica o Instituto Chico Xavier, instituição que leva o nome do principal líder dessa religião. “Enquanto encarnados mesmo que não tenhamos noção disso, ao dormir nosso espírito fica livre e vai de encontro ao que nos unimos durante o dia em pensamento, seja bom ou mal, a sintonia é o que define se vamos para aprender, reencontrar quem amamos ou para saciar os vícios ou ser perturbados por quem nos conectamos ou atraímos em vidas passadas”, explicam. 


Por conta dessa crença de que há toda uma outra vida após a morte e na comunicação entre os vivos e os espíritos desencarnados, existem diferentes vertentes e práticas dentro do espiritismo, incluindo a mediunidade, que é a capacidade de estabelecer essa comunicação com quem ficou por aqui e quem se foi. As cartas psicografadas, por exemplo, podem trazer conforto para quem está enlutado.


Durante o período de luto, muitos praticantes do espiritismo recorrem à fé, à oração e à busca por consolo espiritual para lidar com a perda de entes queridos. Eles costumam se apegar também ao fato de que esse espírito ainda vive, só não está mais preso ao seu corpo físico.


Além disso, as reuniões mediúnicas podem desempenhar um papel importante no processo de luto para alguns espíritas, proporcionando a oportunidade de se comunicar com os espíritos dos falecidos e receber mensagens de conforto e orientação. A depender do centro espírita que você visitar, haverão práticas e abordagens diferentes, também com base no nível de sofrimento daquele que procura ajuda. Até mesmo “cirurgias espirituais” podem ser oferecidas. 


Hinduísmo


No Hinduísmo, o luto é visto como parte do ciclo de morte e renascimento, o chamado samsara. Os hindus também acreditam na reencarnação, e ainda que a alma dessa pessoa que se foi continua sua jornada após a morte. As práticas de luto hindus podem incluir rituais como a cremação, cerimônias de memória e oferendas aos antepassados.


Independente da religião, perceba como cada uma à sua maneira pretende consolar o enlutado e oferecer conforto. Isso porque, por melhor que seja a interpretação dessa passagem, trata-se de um período intenso e complexo para todos nós. A morte pode não ser um adeus eterno a depender da sua crença, mas é sempre ao menos um até logo que deixa saudades para quem fica. Apegue-se à sua espiritualidade nesse momento difícil: ela irá te ajudar!

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Para Inspirar

Haikaa em "Somos a soma do que vivemos"

A artista conta como a sensação de não-pertencimento melhorou com o amadurecimento e com auxílio da arte.

31 de Outubro de 2022



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora]

Haikaa: A autoaceitação é um processo universal na trajetória do ser humano. Pra maioria das pessoas, isso vem com o amadurecimento, com o tempo. No meu caso, o processo foi acelerado pelas experiências que eu vivi desde cedo. Eu fui criada sob a influência de três diferentes culturas, que me levaram a refletir sobre quem sou eu.

[trilha sonora]

 

Geyze Diniz: A artista multicultural Haikaa aprendeu na prática a enxergar o belo no diferente. Depois de uma infância e adolescência turbulenta vivida entre Brasil, Japão e Estados Unidos, Haikaa encontrou um denominador comum que a fez sentir emoção novamente. Conheça a história de pertencimento, autoconhecimento e diversidade da Haikaa.

 

Ouça no final do episódio as reflexões do historiador Leandro Karnal para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

 

[trilha sonora]


Haikaa: O meu pai estudou só até a primeira série do primário. Naquele ano, começou a Segunda Guerra Mundial, e ele passou a ser apedrejado na escola por ser descendente de japonês. O meu pai não estudou, mas teve um grande sucesso profissional. Ele era um visionário das plantas, tinha um feeling muito bom pra agricultura. Ele ganhou bastante dinheiro e decidiu que os filhos iriam pras melhores escolas do mundo, o que na cabeça dele eram as mais caras.

 

[trilha sonora]

Quando eu tinha 3 anos, a minha família se mudou do Paraná pra São Paulo, e a gente foi morar no bairro de Higienópolis. Do campo pra metrópole, de uma fazenda para um apartamento, a partir daí, eu comecei a ter uma vivência de grande diversidade. Em casa, eu falava japonês, porque a minha mãe nasceu e foi criada no Japão. Com os amigos do bairro, muitos deles judeus, eu falava português. E no colégio americano, o idioma oficial era o inglês.

A mistura cultural ficou ainda mais complexa na adolescência, quando eu me mudei pro Japão com os meus irmãos e a minha mãe. Eu fiz o colegial numa escola muito tradicional só de meninas. É o colégio do jet set de Tóquio, onde a imperatriz anterior à atual estudou.

Na adolescência, como é natural, eu fui saindo daquele estado de simbiose com a família. Fui percebendo que eu não era o meu pai, fui percebendo que eu não era a minha mãe. O adolescente geralmente se volta pra tribo, pra entender quem é. No meu caso, eu não tinha um grupo social homogêneo.

No Japão, as minhas amigas eram filhas de embaixadores, de presidentes de grandes corporações, todas trilíngues ou poliglotas… Eu tinha até uma amiga que jogava tênis com a família imperial. No Brasil, pra onde eu vinha todas as férias, era o contrário. A minha melhor amiga era roqueira, usava camiseta de banda de heavy metal e frequentava uns shows nuns lugares bem trash. Como todo adolescente, eu tinha uma necessidade enorme de pertencer, só que o meu meio era muito mutante. Eu era uma pessoa diferente em cada lugar, e vivia uma sensação constante de ser inadequada.

Eu me sentia uma farsa. Quem era eu, de verdade? Eu sou essa pessoa que vai no show de heavy metal ou eu sou a super boa menina que usa sainha quadriculada e estuda na escola de freira? Eu sou a rebelde ou aquela que se quer provar o tempo inteiro com boas notas?

 

[trilha sonora]

Em paralelo a isso, eu não tinha um bom suporte emocional na minha família. Apesar de sobrar dinheiro, faltava harmonia em casa. Minha mãe e meus irmãos, cada um vivia sozinho a sua batalha pessoal. Não conversávamos e a impressão que eu tenho daquela época é que a única coisa que nos unia era o sentimento de culpa. Enquanto isso, meu pai vivia uma vida paralela no Brasil. Eu me sentia insegura, tinha medo, e essas emoções roubaram a riqueza daquela fase, daquela vivência multicultural. O contraste acentuado entre os meus mundos e a falta de alicerces externos fez com que eu mergulhasse num estado de apatia profundo.

Tem um psiquiatra chamado David Hawkins, que descreve os níveis de consciência. São 17, segundo ele. O mais alto é a iluminação, estágio de Jesus Cristo, Maomé, Buda. Um dos mais baixos é a apatia, aquele estado em que a pessoa não sente nada. A tristeza profunda já é um nível acima da apatia, porque pelo menos você sente algo. A minha adolescência foi muito caracterizada pela ausência de emoção. Quem me ajudou a sair desse estado foi o autoconhecimento e a música.

 

[trilha sonora]

A arte era uma coisa extremamente valorizada no colégio no Japão. E, desde criança, eu gosto de cantar. A minha mãe, como uma mãe japonesa, não abraçava, não beijava, não conversava, não dizia que eu era linda, nem que me amava. A maneira dela de expressar afeto era pela música. Ela cantava canções tradicionais infantis pra mim e pros meus irmãos. E assim eu comecei a cantar também.

No Japão, eu me inscrevi em todas as atividades musicais que a escola oferecia. Participei de três corais diferentes e tive a minha primeira experiência como cantora profissional. Aos 16 anos, eu formei uma banda pop com mais 4 amigas, e nós fomos contratadas pela Sony. A gente gravou o disco e fez turnê pela Ásia, mas a banda não estourou e se desfez. Eu não curti a experiência. A minha alma sempre teve um anseio muito grande por liberdade. Eu não queria que alguém decidisse por mim o que cantar, como me vestir, o que falar. O meu caminho seria na música independente.

[trilha sonora]

Eu me formei no colegial e vim passar um ano no Brasil, antes de ir pra faculdade nos Estados Unidos. Nas escolas americanas é bem comum o estudante tirar um sabático entre o colegial e a universidade, o que se chama de gap year. Assim que eu desembarquei, eu peguei o jornal e fui procurar emprego. Ficar um ano sem trabalhar seria inaceitável na cultura americana e japonesa.

E em São Paulo, o meu mundo acabou se cruzando com aquele que foi meu marido por 25 anos. Ele era 14 anos mais velho do que eu e já tinha duas crianças. Aos 20 anos de idade, eu me tornei mãe de coração desses dois filhos, que hoje têm 35 e 30 anos. 

 

[trilha sonora]

 

Meu pai ficou furioso com o relacionamento, e me deu um ultimato: ou eu deixava esse homem e ia fazer faculdade nos Estados Unidos ou eu sairia da família. Eu fui expulsa da família.

Eu costumo dizer que eu morri duas vezes nessa vida, simbolicamente falando. Essa foi a primeira. A pessoa que existia até então, não cabia mais em mim. Por mais doloroso que fosse romper com o meu pai, e foi, eu não aguentava mais interpretar papéis. Eu não aguentava mais ser um fantasma. Tava na hora de eu ser eu mesma.

Nessa época, eu tava começando a seguir uma jornada de autoconhecimento e a escutar a voz do coração. E essa tem sido a minha bússola desde então. Eu refleti sobre o que não mudava na Haikaa que tá no Japão, nos Estados Unidos e no Brasil. E esse denominador comum era a arte. Mas esse tipo de sonho é uma coisa tão complexa, que era difícil de admitir até para mim mesma. E o meu primeiro marido teve o papel fundamental de me fazer acreditar nesse sonho. Ele me falava: “Você nasceu para fazer isso, é o que você ama”.

Eu sou muito medrosa, eu tenho medo de tudo. E, no entanto, quando eu sei que eu preciso fazer alguma coisa, eu vou lá e faço. A Helen Keller, que era uma escritora americana cega e surda do século 19, tem uma frase muito interessante. Diz assim: “A segurança não existe. Adiar o perigo não torna a nossa vida mais segura. Ou você vive como espírito livre ou você não vive”.

Quando eu escolhi a liberdade de ser quem eu sou, eu escolhi aparentemente o caminho mais difícil. Mas eu sentia que era o caminho certo.

 

[trilha sonora]

 

Sem o apoio do meu pai, a minha situação financeira mudou radicalmente, mais um contraste na minha vida. O meu primeiro marido tinha dificuldade pra ganhar dinheiro, e eu me tornei o arrimo da família. Pra pagar as contas, eu fui dar aulas de inglês pra alunos do mercado financeiro. Eu passei dois anos sem comer uma pizza, fazia as compras só no final da feira e não podia nem sair da cidade de São Paulo pra tá próxima da natureza que eu tanto amava, porque não sobrava dinheiro.

Só que a vida sempre tem uma maneira de se certificar que a gente vai seguir no rumo que a gente tem que seguir, pra desabrochar. Dos meus alunos saíram os principais investidores na minha carreira, os meus mecenas. E assim eu consegui realizar o sonho de ser cantora.

Em 2008, 13 anos depois de romper com o meu pai, eu recebi um investimento pra lançar o meu primeiro disco. O não pertencimento, que era motivo de grande confusão na adolescência, acabou se tornando o meu maior tesouro e fonte de inspiração. Eu gravei uma canção chamada I am a Work of Art, que significa “eu sou uma obra de arte”. A letra fala sobre a celebração das diferenças, sobre dialogar com a sombra que existe dentro de nós e sobre autoaceitação. E como essa mensagem é universal, eu gravei a música no máximo de línguas que eu consegui: vinte e duas. Esse projeto teve a participação de mais de 40 pessoas ao redor do mundo, e recebeu uma menção honrosa da United Nations Alliance of Civilizations, o órgão da ONU que promove a diversidade. 

 

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Eu já vivia só da arte, quando o meu pai me chamou pra conversar. Foram quase 20 anos de silêncio, até que ele marcou um encontro numa segunda e numa terça-feira, das 8h da manhã às 5h da tarde, preciso assim. Ele me recebeu como se nada tivesse acontecido. Conversamos sobre visões de mundo, eu mostrei os meus discos, fotos dos meus filhos e um livro que eu escrevi. A última frase que ele me disse foi: “Você tá na boa luta”. Foi o mais próximo de me dar uma bênção e dizer: “Eu tenho orgulho de você”. Um mês e meio após esse encontro, ele faleceu.

Pouco tempo depois, o meu primeiro marido foi diagnosticado com câncer, e veio a falecer também. Foi a minha segunda morte em vida. De novo, eu encontrei força na música para seguir em frente. Atualmente, eu trabalho no monólogo I Am a Cat, eu sou um gato, que é uma referência à possibilidade de você morrer, passar por um luto de si própria e nascer de novo.

A arte tem esse superpoder de ressignificar todos os acontecimentos da vida. No meu caso, o canal é a música, porque o meu contexto me estimulou a me desenvolver nessa área. E foi graças ao meu pai, porque ele achava que investir na educação dos filhos era o maior legado que ele podia deixar pra gente.

Às vezes, as pessoas me dizem que eu sou corajosa por seguir o meu sonho. Eu respondo que não é coragem. Na verdade, eu aceitei quem eu sou, com a ajuda  da arte. Na música, eu encontrei uma casa pras diferentes facetas da minha personalidade. Não existia outra possibilidade a seguir, independentemente do que aconteceria depois. Pela arte, eu aprendi a navegar nos altos e baixos da vida, porque a nossa essência não é linear, mas cheia de incongruências. Eu acredito que a autoceitação é um caminho pra felicidade individual e também coletiva. Porque, quando a gente se aceita como é, consegue ter um olhar mais compassivo com relação ao próximo. Nós nos tornamos seres humanos melhores. 

 

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Leandro Karnal: Haikaa tem uma história de diversidade cultural, origem oriental e os choques com a cultura brasileira, mas a narrativa dela fala muito também da dor. As dores da existência, a rejeição que o pai fez, a escolha dela, a morte da pessoa por quem ela se apaixonou, e a grande questão nesta chave não se trata de pagar aquilo que não pode ser apagado. A morte não pode ser apagada da memória, a rejeição de alguém que amamos não pode ser apagada da memória, mas o que se faz a partir destes dados dolorosos e toda história da Haikaa é como ela trabalha com a dor. Nunca teremos um passado perfeito, nunca teremos uma vida perfeita, jamais as pessoas serão exatamente aquilo que eu gostaria. Elas sempre serão diferentes do meu desejo. Como eu trabalho o enfrentamento com o real? Há pessoas que passam a vida inteira lamentando o que não tiveram ou que fizeram a elas, e outras que pensam: "isto me machucou, isto me feriu, isto me atacou profundamente, isso me provocou lágrima, isto me provocou muita dor". E agora, a partir disto, o que é que eu faço com esta memória? Transformar a dor em impulso, carregar as suas cicatrizes, que são muitas ao longo de uma vida, realmente é um dos grandes processo de superação, de dificuldades e de problemas. Haikaa é o exemplo de que ela transformou, de alguma forma, a sua vida em uma obra de arte, a sua dor em uma inspiração e a sua cicatriz em uma memória de amadurecimento. Não é fácil, mas ela conseguiu. 

 

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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.


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