Para Inspirar
Inspire-se com o episódio de Mente da décima oitava temporada do Podcast Plenae - Histórias para Refletir!
1 de Dezembro de 2024
[trilha sonora]
Geyze Diniz: Carolina
Farani desenvolveu transtornos alimentares na adolescência que foram
desencadeados pelo bullying que sofria na escola. O tratamento foi longo, mas
Carolina conseguiu com o apoio da família e acompanhamento médico recuperar não
só sua saúde, como sua identidade, sua autoestima e a vontade de sonhar. Eu sou
Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.
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Carolina Farani: Eu me mudei de Salvador pra Santos,
no litoral de São Paulo, com 12 anos. Quando meu pai me contou que tinha
recebido uma proposta de trabalho, eu senti medo e euforia. Era um mix de
sentimentos, de querer e ao mesmo tempo de não querer ir pra outro estado. Por
um lado, eu sabia que ia sentir saudades das minhas amigas. Mas por outro, era
legal a ideia de conhecer um lugar diferente e fazer novas amizades.
Só que no primeiro dia de aula eu já percebi que não ia ser
fácil me enturmar. Assim que eu abri a boca pra falar o meu nome, eu senti o
preconceito. Carolina. Mas como eu falava na época: ‘Carolina’. Em quatro
sílabas, meus colegas perceberam que eu era nordestina. Naquela época, começo
dos anos 2000, ninguém falava em bullying, muito menos em xenofobia. Eu nem
fazia ideia que essas palavras existiam. Mas descobri na pele o significado
delas.
[trilha sonora]
Eu não podia abrir a boca, que alguém imitava o meu sotaque.
Se falavam comigo, era tipo assim: “Ôxe, mainha”, “Vixe, mainha”. Eu nunca nem
chamei minha mãe assim. Mas, pros alunos da classe, isso não tinha a menor
importância. Era tanta perseguição, que eu comecei a tentar mudar o jeito
de falar, treinando em casa olhando pro espelho. Não adiantou nada. A turma
pegou implicância comigo e eu fui acusada de roubar uma prova que sumiu. Até o
professor acreditou nesse boato, um absurdo.
Daí inventaram que eu tinha um
caso com um moço que trabalhava na escola. O motivo: ele era nordestino. Ele era o rapaz da
cantina que vendia o lanche. Mas, de repente, ele virou o meu namorado. A fake
news foi tão pesada, que a psicóloga da escola me aconselhou a parar de
frequentar a lanchonete. Um tempo depois, este moço foi demitido. Não sei
exatamente por quê.
Meu irmão, que é dois anos mais
velho do que eu, também passava pelo mesmo processo de adaptação na escola de
forma nada agradável. Ele se isolou, e demonstrou estar estressado e meus pais
focaram em ajudá-lo. Eu, por outro lado, percebendo a
preocupação deles, não quis amolá-los com o que eu sentia. Portanto, me fechei,
e comecei a descontar a tristeza na comida. Ganhei em torno de vinte quilos a
mais. Ou seja, além da minha origem, passaram a implicar com o meu corpo e com
a maneira que eu me vestia.
Eu comecei a ter muita vergonha de falar em sala,
minhas notas despencaram e começaram a me chamar de ignorante. O ataque agora
era falar que todo nordestino é burro. Chegou a um ponto em que eu não
tinha mais identidade. O meu apelido na turma passou a ser Ana ou Aninha, de
baiana, baianinha. Percebendo que eu era minoria e queria tanto pertencer ao
grupo, que eu aceitei ser chamada assim. Mesmo odiando.
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Quando eu completei 18 anos, eu fiz uma cirurgia de redução
das mamas, já que por conta do meu sobrepeso eu tinha muita dor nas costas. Na
consulta pré-operatória, o médico falou assim: “Olha, eu vou ser bem franco com
você. Você tem que emagrecer e tem que fazer ginástica, porque desse jeito o
seu fígado vai virar uma pasta”. A partir disso, comecei a me preocupar com
minha aparência e saúde.
Eu entrei na academia e comecei a excluir alguns alimentos
da minha dieta. Era tipo assim: feijão dá gases, então tira o feijão. Arroz tem
calorias, então corta o arroz. Depois tirei o pão, a carne, o leite, as frutas.
E assim foi até chegar ao extremo de passar cinco dias sem comer nada, só
bebendo litros e litros de água. Ao mesmo tempo, eu passava horas e horas na
academia, com um plástico filme enrolado na barriga, pra queimar mais gordura.
Coincidiu que, nessa época, eu acabei o Ensino Médio e
entrei na faculdade de propaganda e marketing. A minha vida melhorou um pouco,
porque pelo menos eu parei de ser perseguida. Eu tinha me tornado uma pessoa
retraída, cheia de traumas, mas consegui fazer amizades com um grupo de 9
meninas.
Só que nessa mesma época, os traumas que ficaram dentro de
mim, emergiram, trazendo a questão do ser aceita em um grupo. Eu encarei aquilo
como uma nova oportunidade de se refazer, porém eu não sabia lidar direito com
as pessoas – por conta das coisas que eu sofri. Foi no segundo ano de universidade que se via uma
modificação notória em minha aparência.
Minha pele era amarelada e meu cabelo
começou a cair e ficar ralo. Com 21 anos, eu cheguei a pesar 32 quilos. Mesmo assim, eu
tinha uma imagem distorcida e me enxergava gorda no espelho. Frequentava lojas
de roupas infantis, porque as de adulto não cabiam em mim. Teve um dia que eu coloquei uma saia e uma das colegas
percebendo minhas pernas muito finas, falou o seguinte: “Carol, você não tá
muito magrinha, não?”.
Eu neguei, disse que estava bem. Mas era mentira. Eu
estava mal para caramba. Eu sentia tanta tontura que às vezes eu saia da aula
porque não conseguia raciocinar. Eu cheguei a me perder no caminho da faculdade
pra casa, por causa da confusão mental. Teve um dia que as meninas
combinaram um café da manhã na república de uma delas, mas eu não fui. Eu menti
que me atrasei e só encontrei as meninas na aula.
Quando eu cheguei na
faculdade, uma delas, a Priscila, me falou: “Eu guardei um pedaço de bolo que
eu fiz especialmente pra você, Carol”. Aí ela me deu o tupperware na frente de
todo mundo. Eu agradeci, guardei o pote na mochila e fui pro banheiro. As 9
meninas foram atrás de mim e me prensaram naquele cubículo, perguntando porque
eu não comia. A Fernanda, que era a mais esquentada, falou na lata: “Qual o seu
problema, Carol? Você tá magra demais, não come nada. Você tem alguma doença?”.
Eu comecei a chorar e, pela primeira vez, falei que precisava de ajuda. Eu
expliquei que eu não sabia por que eu estava comendo tão pouco. Contei que me
achava gorda, que me sentia sempre cansada e que pensava em suicídio. As
meninas me aconselharam a falar a verdade pros meus pais, mas eu não falei
nada.
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Eu estava tão magra, que não tinha
força pra andar direito. Eu me lembro que uma vez fui pra um restaurante com a
minha família e me apoiei nos meus pais pra conseguir caminhar, tipo uma
bengala humana. Quando a gente entrou no restaurante, todo mundo olhou pra
gente. Meus pais ficaram super incomodados e meu irmão começou a gritar com uma
família que estava sentada numa mesa. Só anos depois eu descobri o que tinha
acontecido. Alguém dessa mesa aí comentou que eu tinha AIDS.
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A primeira pessoa a nomear a
minha doença foi uma professora da academia.
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Um dia ela me perguntou se eu estava me alimentando. Eu respondi que estava um pouco inchada. Aí ela falou: “Você
se acha inchada?”. Eu respondi assim: “É, preciso emagrecer alguns quilos a
mais”. Nesse mesmo dia, ela ligou pra minha mãe e falou que eu tinha anorexia.
Eu estava assistindo TV, quando a minha
mãe entrou no meu quarto muito brava perguntando: “Você tá doente!? O que que
você tem?!”. Ela ficou horrorizada com o telefonema da professora e me proibiu
de frequentar a academia. A maior indignação era com ela mesma, por ser médica
e não ter percebido o que estava acontecendo comigo.
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A minha mãe me levou num
psiquiatra especializado em transtorno alimentar. Depois dessa primeira consulta
ela se ligou que a doença era grave e cuidou de mim durante o tratamento. Ela diminuiu
o ritmo de trabalho pra poder fazer refeições comigo, um hábito que a gente não
tinha mais. A reintrodução alimentar foi muito difícil. No começo, quando eu
tentava comer, passava mal e vomitava. Daí a nutróloga me ensinou a comer de
pouquinho. Uma colher de chá de arroz no almoço. Uma lasquinha de bife.
A nutróloga me explicou assim: “Sabe as crianças desnutridas da Somália? Você
sabia que não pode colocar alimento de uma vez que elas podem até morrer?
Então, não se sinta culpada se você não conseguir. Eu só quero que você tente e
me conte sobre tudo que você fizer. O negócio é tentar, Carol”.
O tratamento incluía duas
sessões por semana com uma psicóloga, mas no começo eu não falava nada. Eu só
fui começar a me soltar quando a psicóloga encontrou um jeito de se comunicar
comigo: pela escrita. Eu contei que gostava de escrever quando era criança e
daí ela me deu um caderno. Ela pediu pra eu escrever tudo que se passava pela
minha cabeça. Nos momentos em que eu tivesse mais desesperada, era pra
desabafar o que eu estava sentindo. Foi só nessa fase que eu comecei a elaborar o
estrago causado pelo preconceito na escola.
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Depois de dois anos de
tratamento, dando passos de formiguinha, meu irmão veio pra Santos e me
convidou pra almoçar no shopping com minha mãe. A gente foi a um restaurante
por quilo e eu pedi um prato feito, que tinha arroz, brócolis e carne. Eu
lembro que, quando coloquei o brócolis na boca, senti um gosto delicioso e a
minha pupila até dilatou. O meu irmão ficou tão emocionado de me ver comer que
levantou da mesa e foi pro banheiro chorar de felicidade. A gente até deu
risada quando ele falou: “Eu não acredito que eu tô chorando porque você comeu
um brócolis”.
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Esse dia foi muito marcante pra
mim. Foi uma prova pra mim mesma de que eu era capaz de comer. Quando eu voltei
a me alimentar, eu não recuperei só o peso e a saúde. Eu recuperei também a
minha identidade e a vontade de sonhar. A minha mãe viu que eu estava pesquisando
sobre a Austrália e me ofereceu um intercâmbio de um ano pra lá. Eu saí do
Brasil com o aval do psiquiatra.
Ele me deu alta, mas me fez um alerta enfático
quando me perguntou assim: “Você sabe que é uma doença crônica?”. Eu disse que
não, daí ele me explicou: “Se você sofrer algum gatilho, o transtorno alimentar
pode voltar”. Eu tive alguns momentos de compulsão e de bulimia na
Austrália. Mas eu não deixei a coisa desandar e não cheguei nem perto de ficar
tão magra e tão doente como eu fiquei em Santos.
É que eu tinha ganhado
ferramentas e autoconhecimento pra lidar com a minha condição. Depois que eu voltei pro Brasil, não tive mais recaídas. Nem
mesmo durante a gravidez. Hoje, eu tenho 39 anos e sigo uma alimentação
equilibrada. Pensamentos viciosos sobre o meu corpo não me atormentam mais. As
minhas preocupações agora são com a minha filha.
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Quando eu olho pra trás, eu sinto gratidão pelas
pessoas que me apoiaram e por cada pequena conquista que tive ao longo do
caminho. O processo foi doloroso, mas me fez renascer mais forte. Eu aprendi
que a minha batalha não era apenas contra a balança ou a comida, mas por um
amor próprio que eu precisava redescobrir. Esse amor me permitiu recuperar o
brilho nos olhos, o prazer de compartilhar uma refeição e a coragem de ser quem
sou. Mais do que vencer um transtorno alimentar, eu venci a guerra que eu travava
contra mim mesma.
Hoje, eu não busco um corpo perfeito, mas uma vida
equilibrada e feliz, em que me sinta bem na minha própria pele. Quando eu olho
para minha filha, eu vejo que todo o esforço valeu a pena – por mim e por ela.
Eu quero que ela cresça com a certeza de que o valor dela não está em um
número, mas na pessoa que ela é. E se minha história puder iluminar o caminho
de outras pessoas, então eu vou ter cumprido a minha missão. Porque a
verdadeira cura é viver sem medo, com amor e aceitação.
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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos
em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.
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Para Inspirar
O sexto episódio da décima sexta temporada do Podcast Plenae traz a história - ou histórias! - de Fabiana Scaranzi e sua sede por reinvenção.
8 de Setembro de 2024
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