Para Inspirar
O primeiro episódio da décima terceira temporada do Podcast Plenae é com Carmem Virginia, representando o pilar Espírito!
17 de Setembro de 2023
Leia a transcrição completa do episódio abaixo:
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Geyze Diniz: Aos 7 anos, dona Carmem Virgínia foi escolhida para ser iabassê, ou seja, a pessoa responsável por preparar os alimentos sagrados no candomblé. Na época, nem ela nem ninguém entendeu por que as entidades elegeram uma criança para um cargo tão importante. Ela assumiu a responsabilidade aos 14 anos e compreendeu que o seu papel era muito maior do que reproduzir receitas. Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.
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Nós morávamos numa vila que tinha 22 casas de um lado e 22 casas do outro. Três casas antes da nossa, havia um terreiro de candomblé. E foi nesse terreiro onde eu conheci talvez a mulher que mais me modificou como pessoa e que me deu todo sentido do que é ter fé. Dona Maria Rodrigues Pinto era mãe de santo e conhecida na rua como vó Lô, porque ela benzia as crianças, era uma criatura muito boa, muito altruísta, muito especial.
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Depois me explicaram o que significava aquele gesto. Xangô tinha me escolhido para ser a cozinheira dele, num cargo chamado iabassê. Ninguém entendeu, porque eu só tinha sete anos de idade. Nem minha avó, nem ninguém, porque geralmente as pessoas mais velhas são escolhidas para essa função. Cozinhar pras divindades é um ato de suma importância no candomblé. Eu demorei sete anos pra assumir essa responsabilidade com o divino e me tornar, de fato, uma iabassê.
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Eu sempre achei minha avó a melhor cozinheira do mundo, mas nunca repliquei as receitas dela, gente. Até porque, ela não deixava a gente chegar perto do fogão. A minha avó queria que eu tivesse outra profissão. Naquela época, a gente via cozinheira mais em casa de família, porque nem bares e restaurantes eram tão comuns como é hoje.
Mas a cozinha foi entrando dentro de mim a partir do momento em que eu me identifiquei como iabassê, que eu quis ser cozinheira, eu entendi que, se eu abrisse aquela porta, eu não tinha que me esconder, eu não tinha que ter medo.
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A partir do momento que eu fui tendo intimidade com as comidas do candomblé, fui entendendo que poderia ser um trunfo pra eu ascender como cozinheira. Porque na verdade todo mundo come a comida dos orixás, mas chama de comida baiana, comida regional ou comida brasileira.
As receitas de acarajé, moqueca, abará, vatapá, caruru e outras riquezas que nós chamamos de cozinha afro-brasileira pertencem aos orixás. Os terreiros de candomblé foram os guardiões dessas receitas centenárias, que chegaram pra gente através da oralidade. De certa forma, eu acredito que Xangô me escolheu lá atrás, porque sabia que eu ia espalhar essa mensagem e ajudar a fortalecer a história dos orixás.
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Ser iabassê significa estar sempre ligada ao divino, para não se perder dentro da cozinha. Porque não é só comida, é energia que vem da gente e alimenta o outro. Não dá para diferenciar o bom caráter do mau cozinheiro ou o mau caráter do bom cozinheiro. Ou você é os dois ou você é nenhum.
Nós, do candomblé, fazemos o que chamamos de oferendas aos orixás. São rituais com alimentos, flores e bebidas que funcionam como uma forma de se comunicar com o mundo espiritual. Existem comidas dedicadas para cada orixá. O acarajé é para Iansã, por exemplo. O caruru, que é uma sopa de quiabo, é para Xangô. Para Oxalá, as coisas brancas: canjica branca com uvas e arroz. Para Iemanjá, tudo que vem do mar. Para Oxum, o ovo, que representa a fertilidade, mas Oxum também come feijão fradinho com camarão, aquilo que chamamos de omolocum.
Só que o orixá em si não precisa de comida. Ele precisa da energia dos ingredientes, ele precisa da energia das nossas mãos e dos nossos corações. As nossas atitudes com o outro são cruciais para que o divino se sinta alimentado pela nossa intenção. Isso que é axé. Então, ser do candomblé e ser iabassê, especificamente, é fazer um exercício diário de errar menos. E, se errar, é imediatamente saber que errou e procurar remediar, porque ninguém aqui é orixá, nem Deus, nem Jesus Cristo. Somos humanos e erramos. Ser iabassê é se preparar diariamente para não se perder no caminho e não fazer coisas erradas, nem em pensamento.
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Abrir um restaurante foi um caminho natural. Ao cozinhar nas festas e dos rituais, muitos visitantes do terreiro foram me dando sinais de que aquela comida poderia ser comercializada. As pessoas comentavam sobre o sabor dos meus pratos. Daí eu decidi me especializar.
Comecei a estudar, mas não só sobre os orixás que estão na minha nação, que é Nagô, mas sobre todas as nações do candomblé, como o Ketu, Angola e Jeje. Estudei sobre os povos que vieram de África, do Benim, de Angola, da Nigéria, do Senegal. Entendi que a África não é só comida de santo, mas um grande continente e me tornei especialista em cozinha africana. A África é plural e nem todo o continente bate tambor.
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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.
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Andava na Faria Lima em um dia de trabalho como outro qualquer quando meu caminho cruzou com o de um morador de rua.
30 de Novembro de 2022
Andava na Faria Lima em um dia de trabalho como outro qualquer quando meu caminho cruzou com o de um morador de rua. Mas esse não foi um encontro qualquer. O morador andava sorrindo, como quem desafia a dureza de sua própria realidade, e chamava seu cachorro por um nome que não pude ouvir, mas foram as notas doces em sua voz que me tocaram. Foi esse carinho intenso que me acompanhou pelo resto do percurso.
Por vezes, esquecemos que somos bichos também. Viemos da natureza e a ela pertencemos. Mamamos como qualquer outro mamífero, parimos e precisamos descansar, fechar nossos olhos, uma imposição natural que insiste em nos lembrar diariamente: não somos máquinas.
A interação entre um morador de rua e seu cachorro é a síntese de tudo isso. A sociedade criou camadas, castas, realidades paralelas. Inventou o dinheiro, as leis, as palavras, as religiões. Construiu muros ao seu redor para se proteger do que nem se sabe e criou a concepção de nação, para reforçar a ideia de que não estamos todos juntos, há linhas imaginárias que nos separam.
E então chega o cachorro, domesticado há pelo menos 12 mil anos segundo pesquisas, e somos novamente bichos da natureza. Dividimos nosso pão e nosso afeto com um ser que não pede nada em troca. Que não vê credo, crença ou cor. Que ama incondicionalmente e não se curva à lógica maniqueísta do bem e do mal. Sobre quatro patas, ele acompanha o rico em viagens internacionais e o pobre em perabulanças cotidianas.
E sorri, à sua própria maneira. Abana o rabo e nos faz entender tudo que há de mais simples e mais precioso também. Desarma até mesmo o mais vil dos homens com uma simples lambida e nos deixa uma saudade abissal quando parte. Sua própria vida curta é uma mensagem: não há tempo para rancor, vingança ou mágoas e é preciso amar enquanto há tempo.
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