Para Inspirar

Ana Lucia Villela em “A criança deve habitar em todos nós”

Na quinta temporada do Podcast Plenae - Histórias para Refletir, a empreendedora social Ana Lucia Villela une infância, propósito e construção de mundo.

27 de Junho de 2021


Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

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Ana Lucia: Quando eu estava na quinta série, eu fiz um intercâmbio que mexeu comigo. Eu tinha 11 anos e eu fui passar um mês nas Filipinas. Fiquei hospedada na casa do sobrinho da Imelda Marcos, que era a primeira-dama do país. Um dia, a gente foi almoçar na casa dela, era um palacete gigantesco. Ela morava num condomínio fechado com um muro bem alto do condomínio. Eu me lembro da cena da chegada nesse condomínio como se fosse ontem. Eu estava sentada no carro e, pela janela, eu vi do lado de fora do muro uma pilha enorme de lixo com várias criancinhas bem pequenininhas procurando alguma coisa pra comer. Eu já tinha visto pobreza no Brasil, claro. Mas, uma discrepância tão escancarada entre a riqueza e a miséria, separadas por um muro, era uma cena inédita pra mim e ficou gravada na minha memória. 

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Geyze Diniz: Pedadoga, dedicada às causas sociais e a tudo que impacta direta ou indiretamente a vida da criança, Ana Lucia Vilela é cofundadora e presidente do Instituto Alana. Com vontade e trabalho, Ana Lucia teve um despertar precoce para trabalhar por um mundo melhor. A partir de um acontecimento pessoal, ela conheceu a dor da vulnerabilidade que tantas crianças sentem no Brasil e no mundo. Desse sentimento nasceu uma missão: honrar e proteger a infância. 

Conheça a linda história, cheia de propósito, de Ana Lucia Vilela. Ouça, no final do episódio, as reflexões do rabino Michel Schlesinger para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. 

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Ana Lucia: Meus pais morreram num acidente de avião quando eu tinha 8 anos. Ainda estavam procurando os corpos quando eu percebi uma movimentação estranha e escutei a notícia pela televisão, atrás de uma porta. Demorei para absorver aquela informação  e perguntar : “Escutei isso na TV. É verdade?”. E foi assim que eu fiquei sabendo que eu perdi  a minha mãe E o meu pai ao mesmo tempo.

No imaginário da criança, tem aquele medo de ficar desabrigado, sem comida, ir morar num orfanato, ter uma madrasta malvada. Eu me lembro de quando eu senti essa sensação assustadora. Aí eu procurei me tranquilizar, dizendo pra mim mesma: “Calma, tá tudo bem, eu não vou passar por isso. Eu tenho vó, vô, tio, tia. Eu tenho casa, eu tenho escola”. Mesmo sendo tão pequena, eu tinha noção de que a grande maioria das crianças no mundo eram muito, muito mais vulneráveis do que eu. E ainda assim, eu senti um medo terrível.

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Olhando pra trás, eu percebo que dessa sensação de fragilidade nasceu a minha vontade de proteger crianças. Esse desejo virou um propósito, que pauta a minha vida.

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Eu nasci numa família ligada à filantropia. Estudei numa escola católica que também tinha esse olhar. Minha tia Milú, criava um projeto de voluntariado no Brasil que havia sido referência até pra ONU. Ao mesmo tempo, a minha tia Helena, que me criou, era voluntária em um projeto social do meu colégio e às vezes eu ia com ela na Favela do Jaguaré, em São Paulo. Eu ficava com as crianças, enquanto ela fazia atividade com as mães. Meu irmão Alfredo e eu, a gente conversava às vezes sobre a vontade de desenvolver algum projeto relacionado à infância quando a gente crescesse.

Eu terminei a escola e quando eu entrei na faculdade, escutei um discurso que eu já tinha ouvido outras vezes e mexia comigo num nível que eu não sei explicar. Era assim: “Se uma criança não foi bem alimentada, ela não vai conseguir se desenvolver, não vai conseguir estudar, não vai fazer um bom trabalho, não vai ter dignidade”. “O adolescente se envolveu com drogas? Ah, esquece!” Era como se não valesse a pena apostar em pessoas que passaram por alguma dificuldade na vida. 

Eu não engoli essa narrativa de que gerações inteiras estavam totalmente perdidas. Tinha raiva dessa fala e queria provar que esse pensamento era errado. Um dia, numa aula com o Paulo Freire, na faculdade, eu tive a chance de dividir com ele essa minha inquietação. Ele respondeu pra mim algo assim: “Concordo com você. Toda vez que eu fiz essa aposta deu certo. É só você ir lá que vai dar certo. Não desista, você tem razão”.

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Nessa mesma época, eu recebi um telefonema do meu irmão. A gente havia herdado uma área enorme na Zona Leste de São Paulo. Ele me disse assim: “Ana, eu acho que esse terreno foi ocupado, o caseiro não vem pegar o salário dele já faz um tempo. Será que não é um lugar pra gente pensar  num projeto social? Deve ter um monte de problema, um monte de gente sem casa . Deve ser um lugar sem esgoto encanado, sem água, sem energia, sem escola”.

Eu chamei um amigo e a gente foi de carro até lá, pra essa comunidade chamada Jardim Pantanal. Eu fiquei impressionada quando cheguei. Não dá para saber o tamanho exato da ocupação, mas tinham milhares de moradores. A gente saiu perguntando quem era a liderança comunitária. Sentamos pra conversar com essas pessoas, tomamos café e eu senti que ali eu poderia mesmo criar um projeto. Eu me identifiquei pra eles como estudante. Demorei alguns anos pra dizer que eu era uma das donas do terreno. 

Comecei a ir na ocupação nos fins de semana. A ideia era dar ferramentas às lideranças comunitárias e ajudá-las a fazer melhorias na ocupação. Com o envolvimento da comunidade, a gente ergueu um galpão pra fazer as reuniões sobre como regularizar o terreno, construir escola, enfim, tudo o que fosse necessário.

Foi assim que nasceu o Instituto Alana, batizado com as minhas iniciais e do meu irmão. Naquele primeiro projeto, eu comprovei a teoria de que as pessoas só precisam de oportunidade. Eu vi que se a gente pegasse uma criança que não soubesse ler, podia ter 12 anos, era só ensinar. Ensina a primeira letra, que ela vai conseguir se desenvolver depois. Todos os dias eu tinha uma demonstração de que as pessoas não são casos perdidos. Eu ficava totalmente deslumbrada com as histórias e ia contar pra todo mundo o que estava acontecendo. Eu descobri na prática que todo ser humano é criativo e tem potencial. Ele só precisa que alguém acredite nele.

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Eu carrego essa experiência do Jardim Pantanal no coração, porque ela abriu um mundo pra mim. Ela me fez enxergar um tripé fundamental pro trabalho do Alana hoje: educação, comunicação e advocacy. E a nossa causa, no Alana, é a criança, é honrar a infância.

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A partir da minha experiência de quase 10 anos como professora em escolas públicas e privadas, surgiu um segundo projeto do instituto. Eu conhecia dos alunos pobres aos da classe AA. E percebi algo em comum a todos eles: a forte ligação com o consumo e o pouco contato com a natureza. Eles tavam mais preocupados com o ter do que com o ser.    

Eu via em comunidades paupérrimas as crianças implorando pra mãe por uma Barbie. Aí a mãe se matava pra comprar a boneca, e logo a menina queria outra coisa. Os meninos entravam pro tráfico pra ter o tênis da época. Nas escolas particulares não era diferente. As crianças sabiam reconhecer os logotipos das empresas antes de saberem o seu sobrenome, ou o nome da árvore na frente da casa dela ou de uma fruta ou legume que deveriam fazer parte da sua dieta alimentar. Quase nunca olhavam o céu. 

Eu pensava: “Ninguém tá vendo isso? Não é possível! A gente tá formando um exército de consumidores, não de cidadãos” Se o mundo for pra esse caminho, a humanidade já era!” E assim nasceu o projeto Criança e Consumo, dedicado a debater a publicidade dirigida ao público infantil.

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Quando eu me casei com o Marcos, eu convidei ele pra dividir esse propósito de vida comigo.  Juntos a gente criou a Maria Farinha Filmes, produtora que acredita no poder transformador de uma história bem contada. O Alana, que começou em São Paulo, se espalhou pelo Brasil, avançou pra América Latina e, quando a gente viu, tava no mundo inteiro.

Não apenas com os filmes, produzidos pela Maria Farinha, mas com vários projetos, como a plataforma Videocamp, ou o Criativos da escola, Criança e Natureza, o Tinis, Rainforest Xprize , o Alana Down Syndrome Center na MIT, enfim, muito projetos e que perseguem um melhor viver com o foco na criança. Dessa criança que pode ser a brasileira, mas que pode ser africana, pode ser asiática. A criança para um mundo melhor não está presa em fronteiras. 

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O Alana foi crescendo totalmente antenado com o que tá acontecendo ao redor do mundo e muito pouco preso ao planejamento estratégico, a metas tri-anuais. Por trás de todos os projetos está o propósito de honrar a criança. Eu tenho muito orgulho de ter juntado um time de pessoas unidas por esse propósito, trabalhando pelos direitos da infância e pelo meio ambiente, porque são duas causas que andam juntas. A gente não tem funcionário, a gente empreendedor, sócio. Sócio do mesmo sonho.  A gente tem uma lista de conquistas palpáveis do Alana, mas pra mim a maior de todas é colocar a prioridade na infância como a grande pauta. 

Tudo que afeta o mundo, afeta muito mais a criança. Por isso, o meu desejo é que o mundo entenda que é preciso levar o público infantil em consideração antes de criar qualquer coisa que seja. Porque se aquilo for bom pra criança, vai ser bom pra todos nós. Eu posso dizer que antes de planejar uma cidade, uma série, um livro, um site , um web, qualquer coisa, a gente devia pensar em como colocá-la no mundo com um design centrado nas crianças. 

Imagine se a internet tivesse começado pensando também na criança como usuária? Tudo seria tão mais fácil. Agora a gente não estaria discutindo a privacidade de dados, os efeitos do tempo de tela pra saúde, o impacto mental dos games, o estímulo ao consumo… Uma internet segura pro público infantil é segura pra qualquer um. A mesma lógica vale pro lançamento de qualquer produto ou serviço. Se o mundo fizer esse exercício permanentemente, de lembrar que as crianças existem e merecem respeito, a gente vai construir uma sociedade muito melhor.

Eu não gosto de falar da criança na perspectiva de futuro. A criança é agora. O que a gente vai fazer por e com elas é agora que importa. Porque é essa formação que vai fazer com que ela seja uma melhor cidadã. E o que é uma sociedade interessante senão um conjunto de pessoas interessantes? 

Quando eu perdi os meus pais, aos 8 anos, eu não podia esperar que alguém se preocupasse comigo depois.  A minha necessidade era urgente. Eu tive a sorte de contar com adultos que pegaram na minha mão e me ajudaram a ser quem eu sou hoje. E é isso que eu quero fazer pelas outras crianças. O meu propósito está totalmente entrelaçado com a minha vida. 

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Miguel Schlesinger:  Existem duas questões urgentes e entrelaçadas na história de Ana Lucia: uma é a infância, a outra o meio ambiente. De fato, as crianças não são o futuro, elas são o presente. O que acontece nessa fase da vida, de bom e de ruim, deixam marcas para sempre. Por isso, cuidar da infância é para hoje. Podemos dizer a mesma coisa em relação a preservação da natureza. 

A gente costuma projetar o impacto ambiental das nossas ações para daqui a 100, 300 anos. Esse horizonte é tão distante e inalcançável que parece não ter sentido agir agora. Esse pensamento está errado. A gente já paga um preço alto por descuidos do passado e não pode usar a desculpa do futuro para não colocar toda a energia necessária para cuidar das crianças e do planeta hoje. São duas questões que a gente, como sociedade, muitas vezes negligencia e adia. Só que a gente tem que saber que as consequências desse adiamento são irreversíveis, num caso e noutro. 

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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae. [trilha sonora]

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Para Inspirar

Letticia Muniz em "A minha liberdade liberta outras pessoas"

Na décima segunda temporada do Podcast Plenae, faça as pazes consigo mesma e com o seu corpo com a ajuda de Letticia Muniz.

18 de Junho de 2023



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:
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Letticia Munniz:
A sociedade ensina pra gente que gordura é feia. Barriga é feia, peito que não é empinado é feio, braço que não é fino é feio, estria é feia. As mulheres são muito pressionadas a mudarem a própria natureza para se encaixarem em um padrão. E, durante 18 anos, eu tentei ser quem eu nunca seria. Até que eu comecei a mudar a minha mente pra entender que o normal é bonito. Quando eu consegui virar essa chave, eu me libertei. Eu passei a viver a vida de verdade, ao invés de viver para ser magra. 

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Geyze Diniz:
A Letticia Munniz é modelo, apresentadora e ativista de um movimento chamado body positive. Ela se maltratou física e psicologicamente tentando alcançar um corpo impossível pro seu biotipo. Quando a Letticia se aceitou como é, ela embarcou numa jornada de autoconhecimento e autocuidado que hoje inspira uma legião de seguidores. Conheça essa história de identificação, aceitação e liberdade de Letticia Munniz. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

[trilha sonora]

Letticia Munniz: Quando eu volto no tempo, as memórias mais marcantes que eu tenho da infância e da adolescência são relacionadas ao meu corpo. Não tem jeito. Eu fui uma criança bem magrinha, até chegar na puberdade. Aí eu menstruei e o meu corpo começou a se desenvolver. Eu ganhei coxa, bunda, peito, braço, mas a cintura continuava fina. Então, eu saí de Olívia Palito, que era como as pessoas me chamavam, pra “falsa magra”. E eu cresci ouvindo isso.

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A essa altura, eu já sabia o que eu queria fazer da vida: ser apresentadora de TV. Mas, não demorou pra eu perceber que eu ia ter um problema pra realizar o meu sonho. Nessa época, a mídia massacrava as mulheres que não eram extremamente magras, dentro de um padrão considerado ideal. Em casa, eu comecei a ouvir que eu precisava emagrecer. 

A pressão vinha de todos os lados, até da escola. De tempos em tempos, na aula de educação física, os professores pesavam a gente pra calcular o IMC, que é o índice de massa corpórea. Aquilo era um sofrimento para mim. Hoje eu tenho 1,68 e peso 98 quilos. Na época, eu devia ter uns 60 quilos. Eu não era gorda, eu só era grande. E ainda assim a recomendação, desde aquela época, era de que eu deveria emagrecer. E essa junção me levou a odiar o meu corpo desde muito nova.

[trilha sonora]

Eu acho que a partir dos meus 10 anos, mais ou menos, não teve um dia em que eu não me preocupei em perder peso. Eu passei a procurar na internet jeitos de eliminar gordura, porque só a dieta não funcionava. E foi assim que eu desenvolvi transtornos alimentares. Eu intercalava episódios de jejum completo, até de água, porque diziam que água engordava, com comer compulsivamente. Eu tomei muito laxante. A minha garganta era toda machucada de tanto vomitar. Eu cheguei a beber detergente e até vinagre pra provocar ânsia de vômito. E pior do que maltratar o físico, era a tortura psicológica de tudo isso.

Eu me lembro de uma vez, quando eu tinha uns 15, 16 anos, que teve um bolinho lá em casa para comemorar o aniversário de alguém da família. Quando eu fui comer o bolo, uma pessoa olhou pra mim e falou: “Olha, com esse corpo que você tá agora, você ainda consegue emagrecer. Mas, se você engordar mais que isso, você não vai conseguir. Então eu acho melhor você já parar de comer agora, porque senão depois, ó, já era”. 

Meus irmãos sempre foram muito magros e eu me culpava muito por não ser igual a eles. Enquanto eles podiam comer qualquer coisa, eu sempre recebia aquele olhar de reprovação se repetisse o prato. Dos três, eu sempre fui a que mais se exercitava. Eu sempre amei esportes. Fui atleta de ginástica olímpica e sempre ficava em primeiro lugar. Mas, eu acabei largando a ginástica justamente pela pressão estética. Além de perder o prazer em me exercitar quando estava todo mundo só querendo que eu emagrecesse. Como eu praticava na escola, eu tinha vergonha que os meus colegas me vissem de collant

Nessa época, eu mudei meu jeito de me vestir até no dia a dia. No colégio, eu ganhei o apelido de "coxinha", por causa da minha coxa grossa. E aí, eu parei de usar short. Eu também não usava regata, pra esconder o braço. Eu ia pra escola de moletom. Agora, imagina isso numa cidade de praia? Eu morava em Vitória, no Espírito Santo. E nas férias, todo mundo se encontrava em uma outra cidade do litoral, chamada Guarapari. E a minha preocupação não era em me divertir, era qual biquíni eu ia usar, como os outros iam me ver com aquele corpo. Eu chegava a ficar horas em pé na praia só para as pessoas não verem a minha barriga dobrada se eu sentasse. 

[trilha sonora]

Quando eu terminei o colégio, eu fui em busca do meu sonho: ser artista. Com 21 anos eu me mudei pra São Paulo pra fazer faculdade de Rádio e TV.
Eu conciliava os estudos com trabalho, freelas e um curso de apresentadora no Senac. Nunca sobrava dinheiro, mas às vezes, eu dava um jeitinho de fazer aula de teatro também. Nessa época, a minha qualidade de vida caiu demais.

E, como eu tinha muitos gastos, eu só podia me alimentar com comida barata e que enchesse a barriga. Não tinha como comprar salada nem fruta. Era pão, biscoito, salgado, miojo. Eu engordei, obviamente, e foi ainda pior, porque agora tinha a pressão da carreira. Eu já fazia testes de figuração em agências de publicidade nessa época.  E aí quando eu engordava, eu parava de me alimentar. E aí, tinha o desmaio, mal-estar, fraqueza, dor de cabeça.

Eu deixava de sair com os meus amigos, porque sair significava beber e comer, então eu ia engordar. Às vezes eu fazia uma dieta líquida. E se eu comesse qualquer coisa, eu já ia pra academia e ficava horas em cima da esteira, eu fazia conta pra eliminar cada caloria que tinha entrado no meu corpo. E eu colocava metas malucas, do tipo:
“Eu só vou comer chocolate se eu perder 10 quilos. Mas, já que eu vou começar esse regime amanhã, então hoje eu vou comer”. Aí eu comia até passar mal.

Depois de quatro, cinco dias, uma semana no máximo, quando eu via que eu não ia conseguir seguir aquela restrição, eu falava: “Bom, então tá, então vou fazer uma pausa, vou comer agora e depois eu paro de novo”. Só que aí nessa pausa, eu não comia um bombom. Eu comia um saco, uma caixa, um pacote. 

Todas as noites meu pensamento era assim:
“Hoje eu falhei. Eu não comi pouco como eu deveria. Eu não me exercitei tanto quanto eu deveria. O que que eu posso fazer amanhã pra emagrecer por hoje e por amanhã?”. Emagrecer era sempre o meu primeiro pensamento ao acordar e o último antes de dormir. 

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Esse padrão doentio começou a acabar quando eu tinha 28 anos. Chegou um dia em que eu simplesmente não aguentava mais essa tortura. Eu queria viver, eu queria ser livre, eu queria ser feliz. A chave pra minha mudança foi descobrir no Instagram o perfil de uma modelo americana chamada Ashley Graham. Eu acho ela muito parecida comigo e algumas pessoas inclusive dizem que eu sou a Ashley Graham brasileira. E eu amo essa comparação.

O corpo dela é muito parecido com o meu. Ela é um pouco mais alta, mas ela tem a coxa, a barriga, o peito e o braço iguais aos meus. Até encontrar o perfil dela, eu só seguia musas fitness. A Ashley Graham foi a primeira mulher que não era magra e que eu achei linda. Ela me mostrou que, com um corpo igual ao meu, era possível ser feliz, ser amada, ter um namorado, uma carreira, ser vista como bonita e ser admirada. E aí, eu entendi que eu poderia ter sucesso sendo eu. Eu não precisava mais tentar ser outra pessoa. 

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Nesse processo de aceitação, eu fui lentamente trocando as referências de mulheres magras por mulheres parecidas comigo. Eu passei 28 anos entendendo e aprendendo que só a magreza era bonita. Então, não ia ser de um dia para o outro que eu ia aprender a enxergar uma nova beleza, né? Mas, o importante era que eu queria. Então, eu substituí aquilo que me disseram que era belo pelo que eu queria acreditar que era belo. 

A obsessão pela magreza me fez desperdiçar muito tempo. Por mais que eu estudasse pra ser apresentadora e atriz, a minha maior preocupação era emagrecer. Sair desse looping foi descobrir a liberdade e o autoconhecimento. Quem era Letticia quando ela não estava 24 horas por dia tentando emagrecer? 

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Eu comecei a compartilhar as minhas descobertas no Instagram. E aí, eu criei uma espécie de diário virtual, mas sem nada de muito sofisticado, com posts sobre o que eu estava fazendo, como eu estava me sentindo e por quê. Eu pense que se uma mulher que nem sabe que eu existo mudou a minha vida, talvez eu pudesse fazer isso por uma outra pessoa. 

Como eu sou engraçada, as pessoas riam dos meus posts, então elas acabaram se identificando comigo. Eu sentia que elas não tinham com quem falar sobre a angústia de não se sentir confortável na própria pele. Às vezes, é mais fácil conversar com quem você não conhece, porque essa pessoa não vai te julgar. Então, eu fui meio que criando uma comunidade, um lugar de troca, de experiências. O perfil cresceu e, graças ao meu talento e à minha dedicação, eu consegui realizar o sonho de chegar na televisão.

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Nessa busca do meu autocuidado, eu encontrei uma endocrinologista maravilhosa que entende o meu corpo pra muito além do IMC, pra além do meu peso. Eu tenho hábitos tão saudáveis, que eu chego ao ponto de ser chata com isso. Eu fui criada por vó, então eu gosto de comida saudável. Eu gosto de jiló, de legume, de verdura. Eu amo fazer atividade física. E fico até de mau humor se eu não fizer. E hoje não é pela caloria. Eu não tô nem aí pra caloria mais, mas porque o exercício muda o astral do meu dia. 

Eu fui entendendo também que se amar não é sobre se achar bonita. Hoje eu tenho esse rosto, essa pele, esse cabelo. Daqui a uns anos eu não vou ter mais. E aí? Eu vou me odiar? Vou ser infeliz? Eu entendi que beleza não se resume à aparência. Eu me acho linda, mas porque eu acho que sou muito legal, porque eu acho que sou maneira, porque eu gosto de ajudar os outros, porque eu sou gentil, porque eu sou uma boa pessoa. 


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Eu não consigo todos os dias acordar pra fazer algo só por mim. A maior e a melhor coisa que eu tenho hoje é poder usar a minha história pra inspirar outras pessoas. E eu vejo que eu tô conseguindo promover uma mudança de pensamento na sociedade. Eu percebo isso pelos depoimentos das minhas seguidoras.


Esses dias, uma delas me contou uma história super engraçada, que ela foi num date com um cara que ela conheceu num aplicativo de relacionamento. E aí, quando eles se encontraram, ele disse que ela era muito mais gorda do que na foto. E ela respondeu que até algum tempo atrás, esse comentário faria mal, mas naquele momento não. E ela perguntou se ele achou ela feia e ele disse que sim. Aí ela mostrou uma foto minha e perguntou se ele também me achava feia. E quando ele disse que achava, ali foi a gota d'água e ela foi embora desse date furado. 

Do mesmo jeito que a Ashley mudou a minha vida, é muito gostoso a sensação de saber que eu também posso mudar a vida de alguém. É muito bom ouvir que, quando uma mulher entra numa loja e vê uma foto minha ou de outras mulheres como eu, como ela, numa campanha, ela se sente feliz, ao invés de se odiar. E eu sei como é essa sensação, porque eu já me odiei muito. Quando eu entrava em uma loja que não tinha uma roupa do meu tamanho, eu me sentia culpada, ridícula. Tinha nojo do meu corpo. Hoje, ao invés de ficar brava, eu entendo que aquela loja que está errada e eu uso o meu trabalho para mudar a mentalidade de quem faz aquela roupa.

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Uma outra seguidora um dia me falou uma coisa muito linda, que eu nunca vou esquecer. Ela disse que a minha liberdade libertava ela. E essa frase resume o que aconteceu comigo 5 anos atrás. A liberdade de alguém me libertou. E é isso que eu faço hoje. Eu uso a minha liberdade para libertar outras pessoas. 

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