Para Inspirar

Ana Claudia Michels em “A perseverança de um sonho”

Confira a história da médica Ana Claudia Michels, que trocou as passarelas pelos corredores do SUS em busca de seus sonhos, no Podcast Plenae

13 de Setembro de 2020


Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

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Ana Claudia Michels: Eu estava em um ótimo momento, pelo menos aos olhos dos outros, eu era muito bem-sucedida como modelo, uma top model reconhecida no mundo todo. E ainda assim eu sentia que me faltava alguma coisa. 


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Geyze Diniz: Ouvir a trajetória da Ana Claudia é ter a certeza de ser embalada por uma doçura ímpar e muita determinação. Trocar passarelas por hospitais é para quem tem um propósito muito bem definido dentro de si mesmo. No final do episódio, você ouvirá reflexões do doutor Victor Stirnimann para te ajudar a se conectar com a história e com você mesmo. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Aproveite este momento, ouça e reconecte-se.


[trilha sonora]


Ana Claudia Michels: Eu tinha 14 pra 15 anos quando dei o primeiro passo fora de Joinville pra iniciar minha carreira.  [trilha sonora] Recebi um convite para vir a São Paulo e conhecer uma agência de modelos. Eu era muito nova e, para não vir sozinha, viemos eu e minha mãe, completamente às escuras, sem saber de nada, só para ver o que estavam falando. Eu era super magra, esquisita, mas na época eles gostavam das meninas assim, com esse padrão que era uma beleza não muito óbvia.  

Chegamos na agência e era véspera da primeira São Paulo Fashion Week, em 1996, e estava uma correria, todo mundo louco. Ninguém nem olhou na minha cara, fiquei lá sentada no sofázinho o dia inteiro. Até que veio uma pessoa e falou assim: "É, então, o dono da agência não vai poder te ver hoje, porque ele está muito ocupado. Você vai ter que ficar até amanhã". E aí mandaram a gente para um apartamento de modelo. 
O lugar era bem triste, para dizer o mínimo. Era sujo, tinha um monte de colchão na sala. Era escuro, porque as janelas davam para as paredes de um outro prédio. Então no primeiro dia, a minha experiência tinha sido inteira ruim, desde o momento em que chegamos na rodoviária, e ficamos quatro horas esperando a kombi que nos buscaria até a chegada nesse apartamento.
Lembro que na época a sensação era de que estava muito claro que aquilo não era pra gente. Eu nunca tinha sonhado em ser modelo, é lógico que eu admirava as meninas, eu admirava as misses que era o que eu mais conhecia, mas eu isso não tinha brilhado nos meus olhos. Então, era isso, não estava certo. Vamos voltar para Joinville. 

[trilha sonora] Mas, no final do dia seguinte, o dono da agência veio e falou: "Não, você vai ter que ficar. A gente vai começar o São Paulo Fashion Week daqui uma semana, é a primeira edição e a gente acha que você tem potencial. Você precisa ficar."  [trilha sonora] Eu fiquei, fiz desfiles nessa primeira edição e, a partir desse momento, começaram a aparecer trabalhos mais frequentes: eu voltava pra Joinville, aí recebia uma ligação e vinha para algum trabalho. Era muita ralação, mas a sensação era de que eu nunca seria uma super modelo, uma top model. Mas eu também já tinha envolvido tempo e energia demais para desistir sem ter ido até o fim, pelo menos o fim que me deixasse satisfeita. 
[trilha sonora]
Até que eu fiz um trabalho que mudou a minha carreira: a capa da Vogue Itália, em janeiro de 2000. Naquela época, era assim, se alguém falasse: "Qual o trabalho que uma modelo precisa fazer para mudar a vida dela?", a resposta seria a capa da Vogue ItáliaQuando eu fiz, foi uma grande realização, e de verdade mudou completamente o meu patamar como modelo. [trilha sonora] Eu estava recebendo um retorno do esforço, mas a sensação era também como se fosse sorte.
[trilha sonora]
Não que eu não tivesse ralado, porque eu ralei muito. Suei muito pra conseguir me dedicar a essa profissão, que era muito difícil para o tipo de família que a gente era, todos muito grudados e com um estilo de vida mais tranquilo. Aliás, minha família também teve que se sacrificar bastante. Mas ainda assim, quando cheguei lá, a sensação era de que faltava um fundamento. Não sei explicar. Era incrível ter chegado aqui, mas não tem um alicerce. Era como se já naquela época, finalmente uma grande modelo, eu sentisse falta de alguma coisa.
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Dos três filhos lá de casa, eu sempre fui a que tinha tudo resolvido, a que tinha certeza do que queria ser. Eu sempre soube que queria ser médica, e não teve nenhum momento em que eu decidi que não seria mais. Só que eu parei de pensar nisso, eu também parei de me questionar, ninguém falava mais nisso. A verdade é que eu sempre continuei me interessar pelo assunto. 
Lembro que, quando comecei a ter dificuldade pra me manter naqueles padrões absurdos de magreza da moda, ao invés de comprar as revistas que tinham aquelas dietas superficiais, eu comprava livros de nutrição. Eu queria entender como funcionava o metabolismo do corpo humano de uma forma mais profunda até porque essas pessoas que conseguem fazer uma dieta muito restritiva tem uma disciplina com a comida que eu nunca tive. Comer, para mim, sempre foi uma alegria, um carinho.  [trilha sonora]
Quando estava com 22 anos, comecei a ter um problema com depressão e entrei na terapia. Passei por alguns terapeutas e o último foi quando eu estava com 24 anos e voltando a morar no Brasil. Nessa época, eu continuava trabalhando bastante, mas comecei a me questionar sobre o que eu faria depois que terminasse a carreira como modelo.
[trilha sonora]
Não que viesse na minha cabeça a ideia de quando era adolescente, um sentimento de "aí, eu queria mesmo era ser médica". Se eu parava para pensar nisso, eu pensava: "Não, isso ficou para trás, seria uma loucura voltar para essa ideia agora, isso passou". Como que eu vou voltar para escola e estudar? Tinha essa nuvenzinha na minha cabeça, de que aquilo tinha passado, tinha ficado para outra vida, não para essa. 

Foi aí que o meu terapeuta, que sabia que eu gostava de medicina, falou: "Por que você não vai fazer um cursinho e vai fazer a faculdade que você queria fazer?". Aí ele começou a me irritar. Eu achava que esse homem estava doido, ou estava querendo me deixar animada, porque qual seria a chance de eu começar agora uma faculdade? E ele começou a me estimular: "Você se matricula no cursinho e vê o que acha". E, assim, de 29 pra 30 anos, realmente me matriculei em um cursinho. 

Eu lembro bem que liguei para os meus pais e falei: "Olha, eu vou me matricular num cursinho, vou prestar pra medicina no fim do ano. A chance de eu passar é minúscula, mas eu quero aproveitar isso como uma experiência, quero aprender no cursinho o que eu não fiz quando eu era mais nova, eu quero resgatar isso. Sem muitas cobranças". 
Meus pais e meus irmãos, na verdade, só faltou soltarem fogos de artifício. Acho que eles me conheciam de verdade e sempre souberam que era isso que me faltava, me deram um super apoio e até vieram para São Paulo um dia antes de eu entrar no cursinho, como se fosse para me levar no meu primeiro dia de aula na escola.  [trilha sonora]
Eu me lembro até hoje de ir caminhando no primeiro dia, bastante nervosa, pensando que todos os adolescentes do cursinho se juntariam e fariam um grande bullying com a minha pessoa. Mas eu cheguei e ninguém estava nem aí para mim, estava todo mundo completamente preocupado em passar no vestibular, todo mundo focado. Não é aquele

clima de escola, com todo mundo mais relaxado. Todo mundo está ali com um propósito, eu tinha o meu. 

[trilha sonora] Na primeira semana, me encantei com algumas matérias e com a sensação de voltar a estudar. Mas tinha desespero também, achei que nunca conseguiria aprender de novo matemática, química, eu não sabia nem o que anotar na aula. Nos primeiros dias, nem tirei a caneta da bolsa.
[trilha sonora]
Eu tinha me matriculado no intensivão, então era tudo dado muito rápido, como uma revisão. Eu lembro bem de, na segunda semana, pensar: "Olha, a chance de eu aprender isso aqui é minúscula. Eu vou sentar, escutar e aproveitar a aula". Mas na verdade, eu fui me redescobrindo como aluna. 
Tinham algumas aulas que eu não dava muita atenção na escola, como história, geografia, mas depois de ter viajado tanto, era diferente. Tinha morado em Paris, em Milão, então as aulas passaram a ser melhor do que assistir um filme, muito gostoso.
Fiz seis meses deste intensivão e, no final do ano, fiz algumas provas para ver como eu me sairia e realmente fiquei bem longe de passar. Mas eu gostei da experiência, gostei muito do cursinho e me animei. Decidi fazer um ano inteiro, para aprender algumas coisas de verdade. 
Isso era 2012 e as aulas começaram em março. Minha rotina era ficar a manhã toda estudando no cursinho e voltar pra casa à tarde para fazer algumas coisas de trabalho como modelo. Era um projeto meio solitário. Mesmo as minhas amigas não entendiam muito o que eu estava fazendo, porque era um mundo bem diferente do que até então vivia na moda. 
[trilha sonora]
Nessa época, eu morava sozinha e estava solteira, até que em julho conheci o meu marido, o Augusto. Falei pra ele que estava fazendo cursinho e para minha surpresa, ele achou o máximo e resolveu acreditar no meu projeto. 
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Aquilo me deu muito gás, porque eu não sentia mais que estava fazendo isso sozinha. Em seguida, eu fiz amizades com algumas colegas do cursinho e que viraram grandes amigas. Elas ficavam a tarde na biblioteca do cursinho estudando e eu passei a ficar lá também.

Chegou o final do ano e fiz as provas novamente. Conferi as primeiras que tinha feito e de novo não tinha ido bem. Foi frustrante, mas lembro que não cheguei a ficar triste, porque era um projeto meu e ninguém sabia, não havia cobrança por parte de ninguém. E eu tinha adorado a oportunidade de estudar mais velha as matérias de segundo grau, sentia como se fosse um presente. 

Continuei fazendo as provas e teve uma que eu achava que tinha ido melhor. Eu tinha a sensação de ter ido bem, mas não tinha nem corrigido mais, porque combinei com uma amiga minha do cursinho de não olhar mais o gabarito, porque só me frustrava. Mas ela insistiu que eu deveria conferir. E eu lembro até hoje desse dia: eu corrigindo essa prova e vendo que tinha acertado 94%. Ela olhou pra mim e falou: "Você passou, 94%, você passou". Eu falei: "Então, essa prova não era das mais difíceis. Eu acho que todo mundo deve ter ido bem". E ela: "Não, não, não, não é assim. Pode ter sido fácil pra você, mas não pra todo mundo. Eu acho que você passou". E aí foi um nervoso da expectativa de esperar o dia em que iria sair a lista. Saiu, e eu passei. Esse foi um dos dias mais felizes da minha vida, até hoje não acredito, fiquei em 37º lugar e foi muito legal. 

Sabe aquela sensação de quando fiz a capa da Vogue Itália, de que eu achava que era sorte? Agora era diferente. Quando passei no vestibular, aquilo tudo dependia de mim, a conquista tinha outro gosto. Me dá até vontade de chorar quando eu lembro desse momento. Eu já tinha conquistado muita coisa, já tinha a minha casa, eu vivia muito bem e acho que isso muda a visão e o jeito como você faz as coisas, tira um pouco a pressão. 
Minha emoção era de realmente ter conseguido fazer o que eu queria lá atrás, um sonho de infância que tinha desistido. E depois de toda essa loucura que foi a minha vida como modelo desde a adolescência, toda a distância da família, eu me emociono de ter voltado ao meu projeto original. Era um propósito de vida que era meu e foi deixado de lado por uma vida que eu gosto, que me trouxe muitas coisas mesmo, mas que era também uma vida com a qual eu não tinha sonhado. Por isso, eu choro quando lembro de passar no vestibular e trago muitos outros momentos emocionantes e transformadores de tudo que vivi desde então.  [trilha sonora]
Um momento fundamental foi quando começou o internato, que é como chamamos os dois últimos anos dos seis da faculdade de medicina, seria o que chamam de estágio

em outros cursos. Eu fiz o meu internato quase todo no Hospital Geral de Carapicuíba, na periferia de São Paulo, onde fiquei por dois anos, até o fim de 2019, quando me formei. 

Eu tive um internato muito legal e conheci o SUS a partir do olhar de médicos nota um milhão, e não vi aquele caos que muitas vezes esperamos. O SUS enfrenta sim dificuldades porque nosso país é grande e com muitas realidades distintas, mas é um projeto em sua essência maravilhoso. 
Nos postos de saúde e nos hospitais, a gente recebe pacientes em uma situação bem difícil, e não é só remédio que eles precisam. Em muitos casos, o simples fato de você ouvir o paciente e explicar pra ele como tomar uma medicação, já significa muito em lugares vulneráveis. Tem pacientes que você atende que não sabem ler, que você tem que mostrar a caixinha, às vezes desenhar, explicar como tomar e escutar. Escutar bastante. Não é só o tratamento, o último livro, o último estudo, a última medicação, é muito mais complexo do que isso e demanda muito o lado humano do médico, não só a capacidade de saber estudar. É preciso estar ali de peito aberto.  [trilha sonora]
Um dia, um paciente chegou de cadeira de rodas, era final de um plantão e estava todo mundo cansado. Ele tinha um ferimento na perna, era diabético. O ferimento estava infeccionado e iria ter que internar. O filho dele, que devia ter uns 20 anos, começou a chorar compulsivamente falando que ele não poderia internar o pai, porque naquela idade seria obrigatório um acompanhante. Ele falou que era só ele e o pai no mundo, não tinham ninguém, nenhum amigo, nenhum familiar, nem nada, e que ele tinha acabado de conseguir um emprego e não poderia faltar porque eles não tinham mais nada em casa, nem para comer, nem para beber. Eu pensei na hora: "Meu Deus do céu, o que a gente faz aqui é nada, o buraco é muito mais embaixo".  [trilha sonora]
Eu sonhava no início com a endocrinologia, tinha a ver com a experiência que tive durante a vida de modelo. Mas, depois de dois anos em Carapicuíba, vi que eu queria mais, não queria cuidar só dessa parte de um paciente, eu queria cuidar de uma maneira mais ampla. 

Duas professoras que eu tive me inspiraram muito e a alegria delas, além de tratar bem o paciente, de serem impecáveis em relação ao tratamento, a técnica, a ciência. Elas falavam com carinho, elas colocavam a mão no ombro pra escutar. Elas viraram as minhas musas e me deram uma referência fundamental da médica que quero ser, do propósito que busco na medicina. Eu conheci elas duas no internato e aquilo que eu imaginava, de um consultório bonito, num lugar bonito, meio que se desmanchou. Isso não é mais prioridade, eu quero ser, pelo menos, um pouco como elas. 

Uma rotina inteira em hospital, eu acho que talvez não seja possível, quero, na medida do possível, acompanhar de perto os meus filhos, um menino e uma menina, que nasceram durante a faculdade. Mas algum tempo em hospital eu quero sempre manter e tem a ver com essas professoras e com o quanto me emociono toda vez que lembro dos pacientes que tive em Carapicuíba. 
E, por eles, sempre vou querer tratar e estar perto de pacientes que precisam não só de medicação e ciência, mas também de um olhar humano. Se não tiver isso na minha rotina, eu não vou estar satisfeita, não vai ter valido a pena.  [trilha sonora]

Eu tive muitos privilégios pra poder realizar meu sonho de ser médica e tenho consciência disso. Então, eu penso muito que esse tanto de privilégio que tive tem que ter algum retorno pra a sociedade, não pode servir só para eu fazer uma foto bonita, contar uma história. Hoje, se alguém me pergunta o que eu faço, eu falo imediatamente que sou médica. Adoro ter sido modelo e a revolução que aconteceu na minha vida. Mas é tão gostoso poder falar, e eu falo: sou médica!
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Victor Stirnimann: O que é o sucesso? Nós todos crescemos ouvindo que sucesso é ter resultados e que resultados são esses? Em nosso tempo, quase tudo gira em torno da fama e da fortuna. Se você construiu o seu patrimônio, se você se tornou popular, se desperta a inveja dos outros, então, dizem, você chegou lá. E como esses são resultados que bem poucos alcançam, a maior parte das pessoas passa a vida imaginando que é isto mesmo. E que este é o destino maravilhoso reservado apenas àqueles que são especiais. Mas, de repente aparece alguém como a Ana Claudia, que experimentou tudo isso bem cedo e que teve a humildade ou maturidade de reconhecer que essas conquistas do mundo nascem de uma mistura bastante misteriosa de esforço e oportunidade, trabalho e estrela. E ela vem nos contar que esse talvez não seja o sucesso definitivo, mas apenas um degrau de uma escada, e que o próximo degrau ainda mais rico e fascinante é aquele onde ela vem aprendendo a servir. Em nosso tempo tão vaidoso parece incrível quando alguém confessa que sua verdadeira paixão é cuidar dos outros e que aprender é uma grande aventura. Felizes os que descobrem que sempre dá tempo de viver os sonhos, e que a escada não tem fim.
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Geyze Diniz: As nossas histórias não acabam por aqui. Acompanhe semanalmente nossos episódios e confira nossos conteúdos em plenae.com e no perfil @portalplenae no Instagram.  [trilha sonora]

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Para Inspirar

Aline Bertolozzi em "Viver cura"

Inspire-se com o episódio de Propósito da décima oitava temporada do Podcast Plenae - Histórias para Refletir!

1 de Dezembro de 2024



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

[trilha sonora] 
 

Aline Bertolozzi: Quando eu coloquei os pezinhos do Léo na areia pela primeira vez e a onda do mar bateu em nossas pernas, eu falei no ouvido dele: “Filho, lembra que eu te contava na UTI como era a praia? Lembra que eu falava como a vida era boa?”. Ele abriu o maior sorriso. 

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Geyze Diniz: Aline Bertolozzi lutou pela sobrevivência de seu filho, Léo, desde a barriga. Léo ainda precisa de aparelhos para viver, o que o manteve dentro de quatro paredes por muito tempo. Percebendo os benefícios de viver a vida “lá fora”, a família de Aline criou a ‘Outcare’, uma mochila que permite incluir socialmente pessoas eletrodependentes e seus cuidadores. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. 


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Aline Bertolozzi: No primeiro ultrassom da gravidez, estava tudo normal. Então, eu e meu marido programamos fazer uma viagem pro exterior pra fazer o enxoval do Léo nos Estados Unidos. A gente já até sabia que era um menino, mas me deu algo que eu não sei explicar. Eu fiquei pensando: e se o exame tivesse errado? E se fosse uma menina? Não sei por que. 

 

Foi então que eu pedi pro médico repetir o ultrassom antes da viagem. E aí, com 17 semanas de gestação, o resultado mostrou que o nosso bebê tinha várias alterações sérias.  A gente começou a investigar todas as possíveis síndromes e doenças que poderiam ter causado aquelas deformações. E um dos exames mostrou que ele tinha uma síndrome raríssima, chamada Síndrome de Chaos.

O
Chaos, ele é só uma má formação nas vias aéreas do bebê. Ele é uma obstrução em dos aneizinhos que a gente tem na traqueia. Apesar de parecer simples, os médicos me explicaram que a qualquer momento eu teria um aborto, porque um feto com essa síndrome não chega a nascer com vida. O coração do Léo estava esmagado por um acúmulo de líquido e ia parar de bater. 

Naquele momento, os médicos me deram duas escolhas. Eu podia entrar na Justiça e conseguir uma autorização pra um aborto legal. Ou eu podia fazer de tudo pro Léo sobreviver o máximo de tempo possível. Eu não tive dúvida. Eu escolhi deixar a minha vida em função da vida do Léo. 

[trilha sonora] 

Os médicos que me acompanhavam naquele momento me disseram que havia um médico especialista em medicina fetal e que talvez ele pudesse nos acompanhar. Havia sido ele quem tinha feito a primeira cirurgia do mundo de traqueostomia intraútero. E talvez, se meu filho fizesse essa cirurgia, ele teria uma única chance de sobreviver. Essa cirurgia inédita aconteceu só 15 dias antes da gente receber o nosso diagnóstico. Eu achei tão curioso duas grávidas terem a mesma síndrome raríssima na mesma época, no mesmo lugar com os mesmos médicos. 

A gente procurou esse médico de medicina fetal e ele falou que não podia fazer a nossa cirurgia. Ele explicou que precisava esperar o outro bebê nascer pra saber se tinha dado certo. Ele não queria fazer duas cirurgias experimentais uma atrás da outra. Mas eu implorava pra ele me operar. Eu insisti tanto, que ele falou pra gente fazer uma reunião com a equipe médica pra então decidir se ele faria essa cirurgia ou não.

Só que, no dia do exame, não deu pra ver nada. O Léo estava virado de cabeça pra baixo, ele estava bem encolhido e não se mexiaO médico, que era super experiente, tentou diversas formas, diversas manobras pra mudar o Léo de posição, mas ele não conseguiu. E aí, o médico, meio desapontado me disse: “Filha, vai para o quarto hoje. Amanhã, às 9 horas da manhã, a gente faz uma reunião com os médicos”. 


[trilha sonora] 

Eu queria muito ter o Léo. Eu nunca tive problema em aceitar que ele seria uma criança com deficiência. A minha única dificuldade era entender o porquê ele não ia nascer. Mas eu não queria ser egoísta e pensar só em mim. E naquela noite, eu rezei muito e eu pedi muito pro Léo: “Filho, se você quer uma chance de nascer, me dê um sinal. E pela primeira vez, em toda gravidez, eu senti minha barriga mexer. O Léo nunca tinha se mexido, porque o coraçãozinho dele não tinha forças pra mais nada.

No dia seguinte, a gente voltou
pra sala de ultrassom. E quando o médico colocou o aparelho na minha barriga, na hora ele falou: “Eu não acredito. O Léo virou. Ele na posição que eu precisava”. E então ele disse: “Léo, agora só falta você levantar o pescoço”. E o Léo levantou o pescoço e ficou parado. 
O médico se emocionou e na hora ele afastou a cadeira, sem nem perguntar a opinião dos outros médicos, e disse: Eu opero esse bebê”.

[trilha sonora]
 

E foi assim que, com 24 semanas de gestação, nós nos tornamos a segunda família no mundo a passar pela traqueostomia intraútero.  

[trilha sonora] 

A cirurgia foi um sucesso. No dia seguinte, o corpinho do Léo já estava todo normal. O problema foi que eu peguei uma infecção, e o parto do Léo aconteceu com 25 semanas. E ele nasceu com pouco mais de 5 meses de gestação, pesando apenas 630 gramas. Da sala de parto, ele foi levado direto pra UTI neonatal. Estava indo tudo bem, mas com 1 mês de vida ele foi acometido por uma infecção no intestino e precisou ser levado às pressas para uma cirurgia.

Os médicos saíram
super desanimados do centro cirúrgico e liberaram a minha família pra se despedir dele na UTI.
 Até então, só eu e o meu marido podíamos estar com o Léo. Eu não queria aceitar que o Léo que tinha lutado tanto pra sobreviver estava indo embora, eu me neguei a dizer que seria uma despedida. Então eu falei pra minha família que agora eles podiam finalmente conhecer o Léo. Eu queria que o clima na incubadora fosse de alegria e não de tristeza. 

[trilha sonora]

O Léo sobreviveu às primeiras 24 horas depois da cirurgia. Dois dias se passaram, três dias, uma semana… Os médicos nem sabiam explicar muito bem o que estava acontecendo, que ele continuava vivo. Eu sempre buscava alguma coisa positiva pra contar pro Léo. Teve um dia que uma moça que tava limpando a janela da UTI, ela esqueceu uma frestinha aberta e um raio de sol batia na incubadora do Léo. Então, eu abri a incubadora dele e falei: “Filho, você não vai acreditar. O dia lindo. Um dia nós vamos sair daqui e eu vou te levar na praia”. 

E aí todos os dias eu passei a contar pro Léo como era a praia, como era a areia, como era o vento. Os médicos, nessa época, começaram a duvidar da minha sanidade. Achavam que eu não estava entendendo a gravidade da situação. Teve uma que me falou assim: “Aline, você não está sendo egoísta? Se ele sobreviver, ele vai ser um vegetal, qual a condição você quer esse filho?”. E eu falei: “Doutora, hoje ele vivo? Então vamos pensar no hoje, porque se ele vai morrer, nem adianta imaginar o futuro”. 
 

No meio desse caos, teve um dia em que os médicos finalmente deram uma notícia boa: os exames estão estáveis. A gente ficou muito feliz só de saber que o Léo não tinha piorado. E aí meu marido decidiu ir embora do hospital um pouco mais cedo, pra assistir o jogo do São Paulo na TV. Só que, na esquina de casa, ele foi assaltado e levou um tiro no pescoço. 

A bala
atravessou a traqueia, a laringe, a faringe e queimou as cordas vocais. Foram 10 dias em coma e os médicos disseram que a condição dele era muito grave. Se ele sobrevivesse, ele ia ficar tetraplégico, porque o tiro trincou os ossos das duas vértebras. Talvez nunca mais ele falasse e ainda tivesse sequelas neurológicas.
 

A minha reação foi a mesma que eu tive quanto eu tive o diagnóstico do Léo: façam tudo que a medicina puder pra salvar a vida dele. Se eu tivesse que empurrar duas cadeiras de rodas, pra mim tava tudo bem. Eu só queria os meus meninos vivos, não importava em qual condição. 

[trilha sonora]

Nesse período, eu nem voltava mais pra casa. Eu ficava indo de um hospital pro outro, dormindo em qualquer poltrona, comendo qualquer comida. Eu repeti a mesma estratégia que eu usava com o Léo. Quando eu visitava o Léo eu falava: “Filho, o papai morrendo de saudade de você. O papai ficou muito feliz que você melhorou”.

Ia
visitar o Rodrigo e falava: “Ro, você não vai acreditar, o Léo lindo, ele engordou. Ele morrendo de saudade de você. Fica tranquilo e descansa, que com a gente tudo bem”. 
É óbvio que nos corredores e dentro do táxi eu chorava, mas eu só passava mensagem positiva pros dois. 

[trilha sonora]

Dez dias depois do assalto, os médicos tiraram meu marido do coma induzido. Todos os médicos ficaram surpresos porque ele acordou falando. Ele contou que tinha tido um sonho, que sonhou com a gente, nós estávamos no aeroporto, o Léo estava grandinho, e tinha muitas pessoas dando tchau para a gente E não foi só isso. No primeiro dia, o meu marido se levantou e tomou banho de pé.

A neuro que acompanhou o caso falou
pra gente: “Eu não sei qual é a religião de vocês. Mas a medicina não explica o que aconteceu aqui”.
 O meu marido não ficou com nenhuma sequela do tiro. Ele teve alta 14 dias depois do assalto e no décimo quinto dia já estava de volta pro trabalho. O sonho que o meu marido teve em coma e a recuperação dele deixaram bem claro pra nós que a gente tinha uma missão a cumprir. Só que, enquanto isso, a situação do Léo continuava grave.  

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Ele teve um sangramento na retina por nascer prematuro e acabou ficando cego. Ele teve uma hemorragia cerebral que o deixou com paralisia cerebral. Depois de 6 meses nessa UTI Neonatal, nós transferimos ele de hospital. E depois de 11 meses pudemos levar o Léo para a casa de home careCom 1 ano e 8 meses, meu filho só tinha passado alguns meses em casa, em home care. E a minha vida girava em torno dos cuidados dele.

Até que um dia, ele teve uma febre e a gente levou ele pro hospital sem saber o que ele tinha. E ele então foi diagnosticado com uma infecção generalizada e foi levado às pressas pra a UTI. Foram 4 meses e diversas complicações. E foi um dia, eu falei pra médica: “Doutora, eu sei que a situação do Léo é grave. Mas, se ele for morrer, eu queria que ele morresse na minha casa”. 

A médica concordou e a gente optou por um sistema inédito no Brasil que é a desospitalização sem home
care. Eu e meu marido fomos treinados pela equipe do hospital pra fazer todos os cuidados que o Léo precisava.
 Chegamos em casa e o Léo teve uma piora da parte respiratória, A médica aconselhou que a gente levasse o Léo de volta pro hospital, mas eu pedi pra ela: “Doutora, me dá 24 horas. Se em 24 horas o Léo não melhorar, eu levo ele de volta pra UTI”. Ela ficou na dúvida, mas acabou aceitando o meu pedido. 

Eu estava sozinha em casa nessa hora. Olhei pro Léo e pensei: o que que a gente vai fazer com essas 24 horas? Então, eu decidi levar ele no parquinho do prédio. Eu amarrei o respirador, a bomba de infusão, o oxímetro, o oxigênio. Coloquei algumas malas nas minhas costas, montei uma UTI naquele carrinho e desci no parquinho. E foi então, que o Léo ouviu vozes de crianças e ele abriu o maior sorriso. E depois desse dia, o Léo nunca mais teve nenhuma internação hospitalar prolongada. Já faz 8 anos que ele em casa. 

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Naquele dia, eu descobri que viver cura e decidi fazer tudo diferente a partir dali. Eu diminuí as terapias do Léo e parei de buscar mais médicos e mais especialistas. A gente começou a passear, primeiro bem perto de casa, e depois um pouco mais longe. Um ano depois, nós precisávamos fazer uma viagem pro Rie a gente levou o Léo pra passar 48 horas na cidade. 

Quando a gente chegou no Rio de Janeiro, decidimos subir o Cristo Redentor. Lá em cima a gente precisou aspirar a traqueia do Léo, um procedimento que necessita de energia elétrica, mas o segurança proibiu que a gente usasse a tomada. A gente precisou descer correndo para o carro para usar a bateria e voltamos para o hotel indignados. 

[trilha sonora]

Eu falei pro meu marido, a gente não pode ficar dependente de pessoas e tomadas, nem todos serão bons e disponíveis em ajudar, e se a gente pegasse uma bateria de caminhão, será que a gente não conseguiria fazer uma adaptação? Aí o meu marido, que estudou engenharia elétrica, falou que a gente podia pegar simplesmente uma bateria de moto, colocar numa mala e não depender de mais tomadas. 

E eu achei a ideia incrível.

Quando a gente chegou em casa, o meu marido arranjou a bateria, a minha mãe costurou uns velcros na mala pra prender e o meu irmão comprou as peças que faltavam para montar a nossa mochila. Depois disso, a gente não dependia mais de energia elétrica. Nós fomos pro parque, nós fomos pra praia e voltamos a aceitar convites pra eventos sociais, pra show, pra estádio de futebol...

Eu contei essa história no Facebook e as minhas seguidoras apelidaram a mala de “mochila do amor”. Com aquela mala, nós podíamos fazer o que queríamos, o nosso problema estava bem resolvido, mas eu sabia que não éramos as únicas pessoas naquela situação. Tem no mínimo 300 mil pessoas eletrodependentes no Brasil. São adultos e crianças com ou sem deficiência presos a aparelhos. E pra cada uma dessas pessoas, existem famílias inteiras trancadas em casa, doentes e/ou deprimidas.
  

Um dos meus posts sobre isso na rede social viralizou, e uma agência de publicidade me convidou pra transformar a mochila em um produto. Eu chamei a médica que cuida do Léo e assim nasceu a Outcare, um projeto para incluir socialmente as pessoas eletrodependentes e seus cuidadores. A gente passou um ano testando o protótipo da Outcare. A gente tomou chuva, sol, foi pra praia e até fizemos uma viagem de motorhome nos Estados Unidos.

Em dezembro de 2023, 50 famílias receberam uma mochila, doadas pelo Hospital Samaritano. O hospital
acompanhando essas crianças em um estudo clínico pra ver e avaliar o impacto na qualidade de vida antes e depois da Outcare.
 O nosso projeto es só começando e a gente já ganhou 20 prêmios internacionais. Em 2024, nós fomos o único case brasileiro entre os finalistas do Festival de Publicidade de Cannes, na categoria farmacêutica.

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O meu objetivo é que mais empresas abracem essa ideia e que a OutCare chegue também ao SUS, pra que todas as famílias com pessoas eletrodependentes, com ou sem dinheiro, possam conquistar autonomia e a liberdade, e voltar a sorrir. Assim como a minha.
 

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Geyze
Diniz
: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae. 

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