Para Inspirar
Seja por necessidade ou por ideal, os negros têm empreendido em larga escala e com fins múltiplos. E a boa notícia é que têm obtido sucesso.
16 de Setembro de 2022
Num cenário de crise econômica, com o aumento de dados como o desemprego e a inflação, cada vez mais brasileiros estão optando por se inserir no mercado através do empreendedorismo. Seja por necessidade, oportunidade ou até mesmo pela tentação de ser seu próprio chefe, os números do ramo têm crescido bastante nos últimos anos, com mais de 3,9 milhões de microempreendedores individuais (MEI) formalizados em 2021.
Sendo maioria entre a população brasileira, com 54%, negros e negras não poderiam ficar de fora dessa tendência. Mesmo num contexto de desigualdade e preconceito, destaca-se uma nova tendência, o afroempreendedorismo: atividades com teor empreendedor realizadas por pessoas negras.
É o caso de Adriana Barbosa, representante do pilar Contexto na nona temporada do Podcast Plenae. Ela que organiza, aliás, um dos principais eventos nessa área: a Feira Preta, o brechó que se tornou o maior evento de cultura negra da América Latina, impulsionado principalmente pelos motivos citados anteriormente.
Embora exista o conceito e o movimento do Black Money, assim chamado para designar o dinheiro que circula justamente entre a população negra da sociedade, seja em comércio ou em serviços em geral, o afroempreendedorismo é caracterizado por ser criado por negros, mas não destinado a eles apenas. É direcionado a todos aqueles que quiserem consumi-lo, tendo um público alvo mais etnicamente abrangente.
Números
Por aqui, esse tipo de ação e fenômeno ainda tem características muito específicas, mesmo sendo um mercado que move mais de 1 trilhão de reais por ano. De acordo com a pesquisa Afroempreendedorismo Brasil, realizada pelo movimento Black Money, pela Inventivos e pela RS Stationz, mostrou que 40% dos adultos negros são empreendedores.
A mesma pesquisa revelou as principais áreas de foco desses empreendedores. São elas, na ordem: saúde e estética (14,3%); e-commerce (10,4%); varejo (10,4%); marketing e publicidade (8,4%); consultoria e treinamentos (8,3%); ensino e educação (7,3%); alimentação (7%); mídia e comunicação (6,7%); financeiro, jurídico e serviços relacionados (5,6%); eventos (5,4%).
A pesquisa Empreendedorismo Negro no Brasil, que foi realizada pela PretaHub, da Feira Preta, em parceria com a Plano CDE e o JP Morgan, mostra que a maioria dos empreendedores negros têm até o ensino médio completo, e as regiões sudeste e nordeste são as que concentram a maior parte deles, com 40% e 31% respectivamente. Centro-oeste, norte e sul entram na fila com 12%, 11% e 6%, nessa ordem.
E foi para dar visibilidade para os afroempreendedores que Aldren Flores criou a +AFRO, startup que impulsiona empreendedores negros e pensada para ser uma “lista amarela” dos afroempreendedores. Quem está na linha de frente são as mulheres, representando 61,5% dos negócios, principalmente nos ramos de self-care, comunicação e alimentação - dado que não surpreende, como já contamos neste artigo sobre empreendedorismo feminino.
Nessa toada surgiu o conceito de “afropaty”: mulheres negras que buscam mostrar um empoderamento mais focado a elas e não tanto às brancas, ocupando espaços, consumindo produtos luxuosos e propagando um estilo de vida muito relacionado às chamadas “patricinhas” que, no imaginário popular, ainda são majoritariamente brancas.
Inspiradas por cantoras internacionais como Rihanna (que, inclusive, lançou sua própria marca de cosméticos, a Fenty Beauty) e Beyoncé e brasileiras como Ludmilla e Iza, cada vez mais mulheres negras têm se aventurado no papel de ser uma digital influencer, uma it-girl que mostra às outras da mesma etnia que elas não estão proibidas de viver uma vida de luxo, conforto e até ostentação.
Isso, porém, passa longe de ser uma futilidade. É um negócio como qualquer outro, mas com essa característica de tentar mostrar uma realidade empoderadora para aquelas que, ao longo dos séculos, se restringiam a apenas sobreviver, tendo todo tipo de lazer negado. Segundo o Instituto Geledés, mulheres negras movimentam 704 bilhões de reais por ano no Brasil, mas a representatividade na publicidade, principalmente em produtos destinados às classes mais altas, ainda é muito baixa.
Tentando mudar essa realidade, surgiram expoentes como as cantoras Tasha e Tracie, a rapper MC Taya e a influencer Monique Berçot. E, se hoje existe uma conversa cada vez maior em torno da aceitação e valorização da autoestima da mulher negra, através da pele, cabelo e feições, é impossível deixar essas mulheres de fora.
Além de influencers, artistas e it-girls, existem também empresas afroempreendedoras que fabricam produtos de diferentes naturezas, ou não estão ligadas a produtos, mas sim, iniciativas. Alguns exemplos:
Malikafrica: da Bahia, a empresa é especializada na produção de acessórios, como colares e brincos, que buscam esse resgate às raízes.
Xeidiarte: a loja, que começou como uma página de ilustrações no Facebook, hoje vende produtos relacionados à moda como camisetas e vestidos, bem como acessórios diversos como quadros e agendas. Tem como valor a união entre negros e negras, bem como a valorização de marcas afroempreendedoras.
Fulelê: criada pela atriz Denise Aires, a marca é focada em produtos infantis como livros sensoriais e jogos. Busca, também, o contato com as raízes já desde cedo.
REAFRO: é a Rede Brasil Afroempreendedor, uma associação sem fins lucrativos que tem a missão de fortalecer o afroempreendedorismo por meio da educação empreendedora. O programa tem como propósito gerar apoio para que afroempreendedores e afroempreendedoras se desenvolvam, alcancem todo o potencial necessário e passem a ganhar ainda mais destaque no mercado, com iniciativas que contemplam mentorias e outros temas voltados ao Planejamento de Negócios.
Pretahub: é um Hub de criatividade, inventividade e tendências pretas. É o resultado de dezoito anos de atividades do Instituto Feira Preta no trabalho de mapeamento, capacitação técnica e criativa, aceleradora e incubadora do empreendedorismo negro no Brasil.
Clube da Preta: nasceu em 2015 e se trata de uma rede de produtores e prestadores de serviço afro-brasileiros. Funciona por meio de uma plataforma digital no modelo de assinatura que conecta clientes engajados em causas sociais a empreendedores de todo o país. A grande maioria dos produtos são feitos por nano e microempreendedores.
Coletivo Meninas Mahin: teve seu nascimento em 2016 com a primeira edição da FEIRA AFRO MENINAS MAHIN, que tem como objetivo fomentar o empreendedorismo da mulher preta e contribuir no combate às desigualdades raciais.
Alfabantu: aplicativo voltado para o público infantil e que tem como proposta ajudar no processo de alfabetização das crianças através de jogos digitais além de enfatizar uma das contribuições africanas no falar brasileiro.
Conta Black: comunidade financeira que se propõe a ampliar o acesso a serviços financeiros a todas as pessoas sem burocracia e educação financeira, por meio de ferramentas simples, para que o crédito não se torne um inimigo.
Diáspora.Black: uma rede de anfitriões e viajantes interessados em vivenciar e valorizar a cultura negra. Para quem quer se conectar com a memória afro, fortalecer identidades e fomentar engajamento.
Dessa maneira, pretos e pretas estão cada vez mais buscando reverter um quadro de preconceito e discriminação que, infelizmente, ainda é a realidade da sociedade brasileira. O afroempreendedorismo veio para ficar e seguirá crescendo e realizando sonhos, provando que a reversão do quadro de um mercado focado em pessoas brancas para um mais inclusivo também pode ser gerar e circular muito dinheiro e ser extremamente lucrativo para todos os envolvidos.
Para Inspirar
O terceiro episódio da décima sexta temporada ouve a história da histórias de Daniel Muduruku e a potência de sua narrativa.
18 de Agosto de 2024
[trilha sonora]
Daniel Munduruku: eu sofri muito preconceito na escola por causa da minha origem. Mas eu acho que, de certa maneira, ser escritor me libertou um pouco dessas memórias ruins. Eu consigo escrever sobre a minha infância e adolescência sem nenhum ranço daquele período.
[trilha sonora]
Geyze Diniz: Daniel Munduruku se tornou escritor quase por acaso, ao ser provocado por uma criança durante uma contação de histórias. Desde então, ele publicou 65 livros e se tornou um dos maiores expoentes da literatura indígena no Brasil. Pra ele, espalhar o conhecimento sobre os povos originários é uma maneira de preservar a identidade brasileira. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.
[trilha sonora]
[trilha sonora]
Eu vivi numa aldeia durante a minha primeira infância e tenho memórias muito boas desse período. A gente morava em umas 60 ou 70 pessoas, divididas em dez casas. Não tinha energia elétrica, e aprender a ficar em silêncio era parte da nossa educação. O silêncio era necessário pra gente não despertar a fúria dos outros seres da natureza, sejam eles animais, sejam eles espirituais.
Desde muito pequeno, a gente era treinado pra usar os nossos sentidos. Eu aprendi a sentir o aroma das coisas e a ouvir com atenção as mensagens da natureza. Aprendi a nadar, a subir em árvore. Eram brincadeiras que os adultos sabiam conduzir muito bem. A gente não sabia que estava aprendendo, mas eles sabiam que estavam ensinando. Ninguém fazia isso porque é legal, mas por uma questão de sobrevivência. Os nossos pais, os nossos avós sempre diziam que a gente precisava ter uma vida longa, uma vida feliz. Mas, pra ter uma vida longa e feliz, a gente precisa estar vivo.
[trilha sonora]
Entre os indígenas, não existe a figura do professor, daquele que ensina. Todos sabem um pouco de tudo, mesmo as crianças, e a responsabilidade do cuidado é coletiva. Os velhos são considerados sábios, porque eles já viveram todas as fases anteriores da vida. Eles fazem a ligação entre o hoje e o ontem. E a figura mais icônica da aldeia é a do pajé. Ele não é um ser iluminado. O pajé é um estudioso da cura e das propriedades das plantas. Pra além disso, ele tem a habilidade de falar com os espíritos e saber se aquela doença é do corpo ou da alma.
[trilha sonora]
Com 7, 8 anos de idade, esses conhecimentos da floresta já estavam introjetados em mim e talvez tenham sido um instrumento de sobrevivência na cidade. Eu nasci em 1964, o ano do Golpe Militar. No começo dos anos 1970, os militares aceleraram uma política de integração e ordenaram que as crianças indígenas fossem enviadas para as escolas, em contextos urbanos.
Quem não respeitasse a regra, seria punido. Centenas, talvez milhares de crianças foram retiradas das aldeias pra aprender a ser branco e civilizado, como eu costumo brincar. Eu fui uma delas. E, a partir daí, as minhas memórias da infância já não são, assim, tão boas.
[trilha sonora]
Eu não queria ir pra escola. Mas, ao mesmo tempo, tinha uma expectativa de que seria uma boa experiência. A escola ficava em Belém, a 250 quilômetros da minha aldeia. Era um semi-internato, semi-internato religioso. Não tinha outros Mundurukus no colégio, porque os militares separavam os povos, eles faziam isso pra obrigar as crianças a aprender português mais rapidamente.
Eu falava português, claro, mas com alguma dificuldade. Meus colegas achavam que eu era um selvagem porque eu não sabia me comunicar direito, e eu sofri bullying por conta disso. Os professores faziam questão de colocar a gente de castigo por não conseguir escrever ou falar direito. Era normal pôr as crianças atrás da porta ajoelhadas no milho ou com chapéu de burro na cabeça. Muitas vezes eu quis fugir e ir embora dali.
A única coisa que me animava eram as aulas de educação física. Eu me dava bem nas corridas e nesse ambiente fiz algumas amizades que eu carrego até hoje. Nos primeiros anos, eu voltava pra aldeias nas férias escolares. Mas, com o tempo, nem isso. Além da distância geográfica, havia um trabalho na escola pra convencer as crianças indígenas a se tornarem homens brancos. Ou, como nós dizemos em Munduruku, pariwat. Aos pouquinhos, eu fui sendo convencido disso, e nem queria mais ir pra minha aldeia.
[trilha sonora]
Eu não tinha cabeça pra fazer pesquisa naquele momento. A nossa luta era justa. Eu estava disposto a fazer esse enfrentamento como um militante da causa, mas não foi necessário, porque houve uma solução pacífica. Descobri que a minha melhor contribuição seria na literatura, inspirado por uma criança de 9 anos.
[trilha sonora]
A minha experiência como professor me tornou um bom contador de histórias. Eu dava aula de filosofia pro Ensino Médio, né, pros alunos do Ensino Médio e percebia que os adolescentes não tinham interesse na matéria. Era algo muito distante da realidade deles. Mas quando eu contava histórias do meu povo, eles ficavam enlouquecidos. Aí eu comecei a juntar a filosofia grega com a filosofia indígena.
Naquela época, existia uma ideia de que o mundo ia acabar na virada do milênio. As pessoas estavam numa onda new age, e eu usei esse contexto para unir esse medo com a espiritualidade indígena. Eu dizia pros alunos: “O mundo não vai acabar, mas a gente tem que mudar pra mudar o mundo”.
Eu escrevi duas histórias e mandei o envelope datilografado pelos Correios pra cinco editoras. Só uma delas se interessou, a Companhia das Letras, que estava lançando um selo infantil. Uma pessoa que até hoje é uma querida amiga me ajudou a reescrever as histórias. Eu sempre conto essa passagem, para dizer que a fonte da inspiração pra escrita pode vir de qualquer parte, inclusive de uma criança curiosa.
[trilha sonora]
Em 1996, eu lancei o meu primeiro livro, que de uma certa maneira é resultado dos meus estudos sobre antropologia. Eu escrevi pensando nas crianças não indígenas, com aquela velha ideia de ajudar a espalhar o conhecimento sobre os povos originários. O livro fez e faz um grande sucesso.
A partir daí, eu passei a me dedicar sobretudo à literatura. Eu acabei facilitando a chegada de outros autores indígenas. Existia mercado e existiam os autores. Alguns indígenas nem sabiam escrever e foram aprendendo com as oficinas que a gente oferecia. Porque as histórias eles já tinham e sabiam contar história. A questão era: como contar a história de uma forma literária?
[trilha sonora]
Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.
[trilha sonora]
Conteúdos
Vale o mergulho Crônicas Plenae Começe Hoje Plenae Indica Entrevistas Parcerias Drops Aprova EventosGrau Plenae
Para empresas