Para Inspirar
Investigamos um pouco sobre esse ofício que nem sempre é remunerado, mas em todos os casos é movido por uma fé e generosidade que transcendem o fazer
16 de Dezembro de 2024
No terceiro episódio da décima oitava temporada do Podcast Plenae, conhecemos a história de fé de Camila Gomes, que tem na reza um amparo desde quando sequer entendia o poder desse ato na infância. Apesar de ter tido alguns anos afastados da sua espiritualidade e ter permeado por diferentes religiões, foi novamente na reza que ela encontrou abrigo e forças para continuar em um momento tão difícil de sua vida, e foi ali que entendeu que queria expandir isso para os outros.
Camila se tornou primeiramente uma benzedeira dentro da religião que estava inserida no momento, a Umbanda. Mas ela não queria fincar sua bandeira em um dogma específico, ela queria expandir esse trabalho para todos os lados. E aos poucos, foi descobrindo que esse ofício já tinha sido também de suas ancestrais distantes.
Isso porque o trabalho de benzedeira é, provavelmente, um dos mais antigos do mundo. Hoje, vamos conhecer um pouco mais sobre ele e mergulhar nessa jornada bonita e profunda que é desprender a sua energia em prol do bem-estar do outro. Leia mais a seguir!
O início de tudoA história das benzedeiras é uma parte significativa da cultura do mundo, mas também da cultura popular brasileira. Ela está ligada às práticas de cura tradicional e à religiosidade popular que foi um trabalho majoritariamente feminino ao longo dos séculos. Por meio de rezas, orações e outras técnicas naturais, elas tratavam doenças, afastavam males espirituais ou protegiam as pessoas de influências negativas.
Essa tradição remonta a tempos coloniais e se consolidou ao longo dos séculos, mantendo-se viva até os dias de hoje, principalmente nas regiões mais rurais e em comunidades periféricas. E não é preciso ir muito longe: as freiras do século XX, por exemplo, eram responsáveis pelas Santas Casas, os hospitais que acolhiam todos antes do SUS chegar como lei na Constituição de 1988. O cuidado, afinal, sempre esteve nas mãos de mulheres e sobretudo de mulheres espiritualizadas.
Mas é importante reforçar que não se trata de algo somente brasileiro. As benzedeiras surgiram a partir da fusão de diversas tradições culturais, desde os saberes indígenas até mesmo os africanos e europeus. Durante o período colonial, os portugueses trouxeram com eles práticas de cura baseadas no catolicismo e em conhecimentos da medicina tradicional europeia.
Já as populações africanas, trazidas como escravizadas, tinham suas próprias formas de cura, frequentemente ligadas a rituais religiosos e espirituais, bem como os indígenas que já possuíam um vasto conhecimento sobre plantas medicinais e rituais de cura.
Essa troca de saberes e a adaptação às condições locais resultaram em um conjunto de práticas de cura muito potente, que mistura o catolicismo popular e cria um ritual característico de benzimento. As benzedeiras passaram então a ser reconhecidas como curadoras, com um papel essencial em suas comunidades, oferecendo cuidados para doenças físicas e espirituais.
“As rezadeiras, enquanto importantes personagens da cultura popular, nos servem de referência para o estudo da memória, uma vez que essa é indissociável da cultura e das instituições sociais”, pontua a doutoranda no Programa de Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia, Claudia Santos da Silva, em seu artigo “Rezadeiras: guardiãs da memória”.
“As rezadeiras, em sua maioria, são católicas, embora suas ações não correspondam às exigências da Igreja Católica. Isso porque elas pertencem ao que chamamos de catolicismo popular. Esse completamente tomado de símbolos e comportamentos criados e adaptados a partir das crenças e experiências de vida, também se configuram em uma grande força de resistência. Tais aspectos imprimem uma inevitável relação entre a ação cotidiana das rezadeiras e a preservação da memória de uma determinada comunidade”, continua.
As rezadeiras, ainda pontua Claudia, sempre tiveram papel muito importante junto às populações mais carentes, que não possuem acesso a medicina tradicional e recorriam aos chás, garrafadas e ritos na busca da cura. Para tratar dos males do corpo e do espírito, elas utilizam as rezas, mas também os banhos e os chás, arsenal geralmente adquirido através das gerações, passados como sabedoria, através da oralidade, principalmente.
“O ato de transmitir tais conhecimentos faz o grupo estar sempre reconstruindo lembranças e, consequentemente, reafirmando a sua identidade. A influência africana é de grande predominância na construção das práticas das rezadeiras. O uso de diversas folhas, muitas de origem africana, que passaram a ser cultivadas também na Bahia, sejam eles realizados por pessoas de santo ou por rezadeiras do catolicismo popular”, explica Claudia.
Durante os períodos de opressão, especialmente durante o Brasil colonial e imperial, as práticas de cura popular e de resistência espiritual ajudaram a preservar culturas e tradições que, muitas vezes, eram vistas como "heréticas" pelos poderes dominantes.
Por isso mesmo, na primeira metade do século XX, observou-se na Bahia uma intensa campanha preconceituosa, elaborada pelo poder público e amplamente divulgada pelos jornais, contra a vendagem de plantas medicinais, na tentativa de “destruir a independência que a população mais pobre, negra e de origem cabocla conseguia manter usando essas folhas.”
“Apesar de todas as investidas contrárias, as rezadeiras têm resistido ao longo da nossa história. Assim, acreditamos que essas mulheres trazem em sua função social a importante tarefa de preservar a cultura, uma vez que refazem as lembranças, que compõem a memória coletiva de determinada sociedade”, conclui a especialista.
O papel das benzedeirasO trabalho das benzedeiras está muitas vezes relacionado a problemas como "mau-olhado", "encosto", doenças causadas por espíritos, além de males físicos como dor de cabeça, febre, ou infecções. A prática é geralmente realizada com o intuito de restaurar o equilíbrio entre o corpo e o espírito, algo essencial para a compreensão da saúde nas tradições populares.
Os benzimentos são feitos por meio de uma combinação de elementos espirituais e naturais, como ervas, água benta, ou até mesmo o uso de objetos como cruzes ou imagens de santos. Muitas vezes, a benzedeira recita rezas durante o ato de cura. Nas últimas décadas, houve um renascimento do interesse pela medicina tradicional e pelas práticas de cura populares.
Muitas comunidades passaram a valorizar o saber ancestral das benzedeiras, e o movimento pela valorização da medicina alternativa e do patrimônio cultural popular trouxe de volta o reconhecimento dessas práticas. É o caso da retomada do interesse pela consagração da Ayahuasca, que te contamos aqui o que é e como é a experiência de tomá-la, ou das medicinas da floresta, que também falamos por aqui.
Hoje, há um esforço crescente para integrar as tradições de cura popular com a medicina moderna, reconhecendo a importância das benzedeiras na manutenção da saúde e do bem-estar das comunidades. A história das benzedeiras, afinal, é mais do que uma história de práticas de cura, mas é também sobre resistência cultural e de sabedoria popular.
Elas representam um elo entre diferentes tradições de cura e espiritualidade e continuam a ser figuras importantes em muitas comunidades no Brasil, especialmente nas zonas rurais e comunidades carentes, onde elas ainda possuem muita relevância. Ela preserva saberes ancestrais e, sobretudo, propaga o domínio da fé e da espiritualidade - e uma generosidade sem fim.
Para Inspirar
Há diferentes abordagens para se tratar de um mesmo tema: o rompimento desnorteador que a perda de alguém pode significar na vida de um indivíduo
29 de Novembro de 2020
Não é preciso consultar um dicionário para saber o que significa a palavra luto. Mas, segundo o dicionário Michaelis , ele pode corresponder desde um tipo de pano usado em momentos fúnebres, até “o aspecto tristonho das coisas”. Todas as seis definições que o dicionário relata apontam para um mesmo sentimento: a mágoa profunda proveniente de uma perda.
Durante a Primeira Guerra Mundial, o pai da psicanálise, Sigmund Freud, escreveu um de seus textos mais densos e estudados de toda a sua obra, “Luto e Melancolia” (1917), onde cravou-se o termo Trauerarbeit , que significa “o trabalho do luto”.
Nesse escrito, Freud também implica uma denominação “oficial” ao que se dizia o luto: “a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante”.
Apesar da notoriedade que o artigo conquistou, ele não era novo no repertório de Freud. Dois anos antes, em 1915, o psicanalista já tratava dos temas morte e perda no seu escrito “Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte”. É nele que Freud traz à luz a questão da compreensão da morte do outro, e como nossos afetos estão implicitamente interligados à isso. É o que torna a morte de um ente querido muito mais insuportável do que a de um inimigo, por exemplo.
De lá para cá, o tema já foi amplamente estudado. Isso porque, enquanto vivermos, haverá perdas - tanto físicas quanto simbólicas - sendo a perda então inerente à existência humana. Mas ainda gera tabu, como contamos
nesta matéria.
Para a psicóloga clínica especialista em luto, Juliana Picoli Santiago, “o luto é uma resposta natural e esperada diante de um rompimento de um vínculo emocional, afetivo que seja significativo para uma pessoa. Ao longo das nossa vida, vivemos alguns lutos, como o crescimento, as transições, rompimento afetivo, mudança de cidade ou país. Tudo aquilo que tem um vínculo afetivo e passa uma situação de rompimento, traz consigo essa resposta, que é o luto”.
Sendo assim, estamos constantemente expostos - e isso não significa que devemos superar algo, mas sim, aprender a conviver justamente com as dores que se foram e as que virão.
Expor os fatos a grosso modo pode parecer cruel e até um pouco mórbido. Mas a verdade é que, uma vez que se enxerga o luto como parte natural da complexidade dos sentimentos humanos, torna-se mais palpável lidar com ele também. E o que isso quer dizer? Não é que será mais fácil, mas será necessário senti-lo em toda a sua integridade para que haja algum avanço para além da tristeza paralisante.
“A morte de um ente querido é a experiência mais desorganizadora que um ser humano pode viver no seu ciclo vital. Quando vivemos o luto, vivemos a queda do mundo presumido, ou seja, aquilo que dá para nós o conforto e a segurança de que as coisas são de uma certa maneira aquilo que nos coloca no mundo e nos faz viver. E o vínculo é na sua base e excelência a busca e também o oferecimento de proteção e de segurança" explica Juliana.
Esse vínculo é o que nos mantém vivos, afinal, o ser humano é um ser vinculado e sociável por essência. Mas é justamente o fator que nos faz ser quem somos que também nos joga em um poço fundo. Perder vínculos é também perder-se junto, ainda que momentaneamente.
O ano era o de 1969, e a psiquiatra nascida na Suíça e especialista em cuidados paliativos, Elisabeth Kübler-Ross, escrevia o livro que seria um marco na sua carreira e nos estudos sobre luto, “Sobre a Morte e o Morrer”. Nele, por meio de entrevistas com pacientes terminais e suas famílias, Elisabeth cravou o que denominou como sendo os estágios comuns do luto.
Eles são amplamente conhecidos até mesmo pelo público leigo: a negação, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação - nem sempre nessa mesma ordem, mas obrigatoriamente enfrentando todas elas em algum nível. O que caracteriza essa linha de pesquisa é sobretudo uma promessa de “cura” ao final do processo. Ou seja, uma vez enfrentado os cinco estágios, você está “curado” dessa perda.
“Na clínica contemporânea, já existem muitos psicólogos que trabalham de outra forma, que é pautado no modelo da teoria do apego, do John Bobe. Ele diz que a dor do luto é correspondente a experiência do vínculo. Nós lidamos com essa dor a partir da forma como nós nos vinculamos com alguém”. Lembra de Freud e seus escritos de 1915, sobre a relação da dor da perda X nossos afetos em relação o falecido? É bem por aí.
E é justamente essa maneira que nós nos vinculamos com o mundo e conosco é o que nos dá base suficiente para dar base de integrar os lutos da vida. “O luto não acaba, o luto está integrado. Isso significa que há a capacidade de se encher novamente de novos significados apesar de ter vivido tão dolorido” diz ela.
O luto, portanto, não desaparece após um belo dia. Ele se torna parte da complexa rede de sentimentos que um único ser humano pode sentir, saindo de sua fase mais aguda para se tornar parte de quem somos.
Em seu episódio para o Podcast Plenae
, Veruska Boechat relata ter percebido que “o luto não é linear: você tá péssima, depois fica média e depois boa pra sempre. Não. Um dia tá bem, no outro mal, no outro pode ficar bem de novo, e assim vai".
Essa não é uma percepção somente dela, mas sim, um processo comum para os enlutados. Justamente por ser ter desconcertante, ele leva um tempo para ser significado dentro de nossa psique - e esse tempo é individual de cada um. “Cada sujeito vai viver o luto de uma maneira diferente, às vezes até dentro de uma mesma família, integrantes vão viver de forma particular. Mas pode-se afirmar que todos os aspectos da experiência humana vão sentir” diz Juliana.
Ao contrário do que muitos pensam, a memória deve sim ser explorada, justamente para combater o que a psicanálise chama de “recalcamento” - que é a tendência que a nossa mente tem de lidar com apenas reminiscências de um acontecimento muito estressante, ou seja, fragmentos que podem ser até manipulados por nós de forma inconsciente.
“É adequado que nós possamos falar sobre a pessoa que se foi, sobre sua história, não se deve evitá-la. É importante que possamos trazer ao nível da palavra aquilo que nos traz significado. E muitas vezes, dar significado a uma perda, está necessariamente ligado ao poder falar sobre o que aquela pessoa significava, trazia na sua experiência e no seu papel pra vida de quem ficou” explica a psicóloga.
As redes de apoio, como mencionamos nesta matéria, também são absolutamente necessárias como parte do processo. Saber respeitar o que se vive é importante. “Muitas pessoas confundem a dor de um luto agudo com um quadro depressivo. Luto inclui saudade, tristeza e dor - o luto dói e é natural que doa” diz.
Mas estar atento ao nível desses sintomas é importante, para que eles não se tornem incapacitantes a longo prazo. Por isso, outro passo importante para a vivência do luto é procurar ajuda profissional caso sinta essa necessidade. “Uma dica de ouro é tomar cuidado com o sono. É um fator de proteção à essa pessoa, pois quando regulado, dá uma capacidade muito maior de viver um processo de integração de situações que incluam dificuldades emocionais” conta.
Por fim, estar consciente de que a jornada é interna e intensa, um mergulho dentro de si e “da própria percepção de temporalidade” como crava Juliana. Entender que não há como falar de vida sem falar de morte, e não há como falar de morte - mesmo a mais abstrata delas - sem falar de luto.
Conteúdos
Vale o mergulho Crônicas Plenae Começe Hoje Plenae Indica Entrevistas Parcerias Drops Aprova EventosGrau Plenae
Para empresas